segunda-feira, 21 de março de 2011

Filosofia e Rock

Caros amigos e bloggers. Deixo-vos aqui o texto que me serviu de base à lição da FLUL, no mês passado, no âmbito do programa 100 LIÇÕES da Reitoria da Universidade de Lisboa.

(o texto sofreu algumas alterações na apresentação oral)

Um abraço e boa semana:

Filosofia e Rock- como viver no mundo da poesia eléctrica.

Nestes anos todos tenho vivido diversos paradoxos. A minha passagem pelo Curso de Filosofia, trouxe-me, pelos menos alguma capacidade para os identificar e integrar no meu quotidiano, que muito tinha de estranho mas que por outro lado ia fazendo sentido. Muitas vezes na estrada, nas digressões, as pessoas trocam algo mais que banalidades, e muitas vezes me perguntavam, por causa das letras, a minha formação. À resposta de cursei filosofia a reacção era de inevitável esclarecimento: sim faz todo o sentido. Às vezes eu que ficava desarmado mas por pouco tempo já que a história do Rock e do Metal e das Humanidades era longa, frutífera, sólida, analisada e documentada.

Fazia sentido porque talvez haja algo de ainda místico no encontro entre um fã do Médio Oriente e um cantor de Heavy Metal de Portugal. Por questões da imagem prestigiante de poetas e filósofos Portugueses que se encontra, com ou sem espanto, por todo o mundo. Porque Portugal é ele também um paradoxo lunar, com a sua costa banhada pelo Sol deslumbrando uma terra de pura e complexa melancolia. Fazia sentido à senhora mais velha, em outras andanças minhas, que via o elemento estranho de um grupo popular como alguém que pensa e que por isso parece assim: vestido de negro, anéis nas mãos.

É deliciosa esta estranheza que ainda desaprova a profissão do filosofo (ou do investigador filosófico) mas cuja repulsa é minada, por dentro, pelo fascínio que o filosofar ainda desperta, até pela questão de como gerir o nosso pouco tempo da vida, gasto a pensar, mapeado pela dúvida, numa época cruelmente pragmática e material. Consigo perceber, até mesmo identificar-me com esta reticência das pessoas comuns porque eu me colocava assim mesmo, como um comum, perante a leitura de Kant. A sua matéria era para mim como visualmente circular, estando eu, através de mapas e esquemas cedidos pelo autor, a construir, pela abstracção, como que tubos acrílicos que ajudassem a fluir o vapor do pensamento e sair do outro lado, por uma torneira bonita, de ouro, num fiozinho de água, claro aos nossos olhos. O que eu mais admirava ainda era aquilo que, mais coloquialmente, digo a amigos em conversas filosóficas de café que mantemos entre copos: imaginem o Kant sentado. Pensando em como se pensa e depois elaborando documentos com notas precisas do que são feitas as ideias. Penso que esta é a imagem mais próxima que tenho da abstracção, fisionomicamente substanciadas pelo pensamento comum, num processo que envolvia tudo aquilo que Kant descrevera ao fazer exactamente isto. Um pouco como aquela imagem nos programas antigos da RTP 1 em que aparecia um Sr. Na Televisão com uma televisão que transmitia aquele Sr na televisão com uma televisão no ângulo superior direito, vezes sem conta, numa repetição que nunca esqueci e que me permitiu melhor perceber o infinito. Tal como o Kant a sentar-se para pensar sobre pensar me ensinara a abstracção.

Antes de me tornar profissional da música, dei explicações em part time de Filosofia e Inglês. Tinha um conceito dinâmico, explicações ao domicilio, intensificadas pela proximidade dos testes que me fizeram perder concertos importantes (quando os G’N’Roses vieram a primeira vez a Portugal, estava eu a explicar a morte da religião de Hegel numa torre de apartamentos na Quinta da Luz de onde se ouvia ao longe o concerto). Chegados ao esquematismo dos conceitos puros do entendimento de Kant, muitas vezes recorria à vulgaridade inocente de pegar num prato e num círculo para designar objecto e ideia de objecto. Bem sei que era uma comparação simplisticamente abusiva mas uma parte de mim gostava desse minimalismo de puto que estuda Filosofia e consegue explicar a outros, fazendo avançar a roda.

Por incrível que pareça o auditório 1 da FLUL foi o primeiro palco que enfrentei a sério, descontando a meia dúzia de concertos com a banda em condições inimagináveis por terras de Portugal corria o ano de 1993. Lembro-me perfeitamente do Dr. António Pedro Mesquita ter desenvolvido uma iniciativa que consistia numa série de apresentações orais perante as turmas e o próprio professor, em jeito de aula, onde durante uma hora tínhamos oportunidade não só de apresentar o nosso trabalho mas também de vestir melhor a pele e avisão do professor, uma das duas alternativas que teríamos no mercado do trabalho. A outra seria a de investigador. Ou inesperadamente: cantor de uma banda heavy!

Nesse dia vesti até uma roupa que seria (e por vezes foi) mais apropriada para um concerto com os Moonspell: calças de cabedal, presas por fios nas laterais, camisa branca e colete de cabedal. Atei o cabelo mais em cima e foi com este aspecto medieval e pagão que me apresentei perante a minha audiência (onde se incluíam alunos do terceiro ano com a disciplina de Filosofia Antiga “ pendurada”) para debatermos em conjunto o tema que eu propunha: Diversos aspectos da inauguralidade do pensamento parmenídeo no contexto da filosofia antiga.
Algumas notas:

- Inauguralidade era a minha palavra preferida da época e usava-a em tudo o que podia, desde trabalhos para o curso às letras e cartas escritas pelos Moonspell.
- Adorava usar a palavra parmenídeo em vez do simples de Parménides. A palavra fazia com que tudo fluísse e ao mesmo tempo substantivava e adjectivava (se tal fosse possível) o pensamento do Pré-Socrático. Ai está uma palavra que não gostava tanto. Por fim, a utilização do E depois do M e o acento agudo no I depois do N tornavam-na uma palavra irresistível de repetir.
- Diversos aspectos foi o inicio escolhido para título de vários trabalhos meus (por exemplo Diversos aspectos do cogito agostiniano em Filosofia Medieval) e cujas razões são simples de perceber e andarão entre a ingenuidade e a Chico-espertice.

A memoria que guardo da aula conta-se entre as memorias mais felizes que tenho. O Dr. Pedro Mesquita dirigiu-se a mim perante a turma gabando-me a coragem e a fluidez da aula tendo também em conta alta os vários discernimentos duvidosos e acepções erradas eu que tinha apresentado à turma! Esta justiça de comentário não me esmoreceu, pelo contrario, entreguei o meu trabalho final exactamente sobre o mesmo tema, ajuntando algumas leituras e comentários ao corpo do texto sob o qual tinha baseado a aula. Passei à disciplina com quinze valores aos quais acho que o meu acto de bravura no auditório não é alheio.

Atalho, para depositar a esperança, de que a recordação de hoje também encontre lugar neste deposito arejado onde se encontram os melhores momentos da minha vida.

Existe um mito que os artistas e as pessoas que estão a comprar casa partilham. É o mito do clique. Aquela faísca meio pentecostal que surge dentro da nossa cabeça, faz o ar passar mais farto entre a garganta e o coração, acelerando ambos quando na presença dessa experiência. Foi isso que esta aula me deu. E que a faculdade e o curso de Filosofia me passou.

Eu sou um rapaz dos subúrbios, do tempo em que os subúrbios eram um mundo e viajar até Lisboa uma viagem interplanetária. Alguns de nós seguiam vidas sem regras. Outros liam Dostoivesky, viam Woody Allen, compravam a K do Miguel Esteves Cardoso e, sem acesso a muita coisa, tínhamos um acesso ilimitado à nossa inteligência e poder criativo e especulativo e sobretudo uma sede de conhecimento só saciável pelas fontes que estes edifícios centenários encerravam. Quando vinha na camioneta da Brandoa até ao Colégio Militar e numa viagem de ficção toda a linha do metro até à Cidade Universitária, ouvindo sempre música e lendo sempre um livro, tinha tempo para pensar, romantizar, sentindo ganas e nervos pelo ambiente, pelas lições, pela partilha que se realiza na Universidade. Muitas vezes me senti num labirinto académico, com contra-senhas bizarras: reprografia azul, departamento, pavilhão no Campo Grande. Muito me valeram as minhas colegas, bússolas infalíveis para alguém com a cabeça na lua. Passados uns tempos já soavam familiares aos meus ouvidos o Kirk & Raven, o Izusquisa, a livraria da Gulbenkian e o bar onde se comia mais barato.

Era a idade da pedra desta geração. Quase com Internet. Mas ainda sem ela. Não era melhor, nem pior, tínhamos outras confusões mas outras orientações também, que equilibravam uma tradição de boas intenções com o já irrequieto desejo que os noventa se fossem.

Os Moonspell são contemporâneos e como tal uma mistura destes mundos. Eu sou incrivelmente reconhecido como um filosofo no Metal e do Metal. É paradoxal, pomposo e estranho. Mas não há publicação que não comente isso quando fala comigo. No Expresso fui o filosofo metálico numa edição da revista Única. Na Alemanha, na revista Metal Hammer, que vende 60.000 unidades por mês, chegando agora a uma comunidade virtual de 300.000 pessoas, focou muito o aspecto de uma das nossas canções Handmade God (Deus feito à mão) ser influenciada pelo ateísmo hermenêutico de Feuerbach da Essência do Cristianismo, ou os fãs romenos contentes por eu conhecer alguma da obra de Cioran e ter usado essa leitura noutro tema. São estes brilharetes que o privilégio de ter cursado aqui na Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras me permitiram fazer. E por isso estou profundamente agradecido.

A minha vida é, em definitivo, um paradoxo aparente de algo que é universal, verificável e emocionalmente sentido. Há bem pouco tempo estive com os Moonspell a tocar num cruzeiro de Heavy Metal entre Miami, EUA e Cozumel, México. Quarenta e oito nações presentes para ver quarenta bandas numa Babel de afectos, comunhão e diversão a todos os níveis bíblica. Hoje elaboro aqui a minha experiência e vivência da electricidade da poesia e da filosofia. Afinal, se me permitem, nós somos ainda o dedo por trás dos botões, os olhos por detrás do ecrã, o garante de funcionamento de todo o mundo e civilização e, ao mesmo tempo, o seu maior e mais iminente perigo. Esta pujança não pode, nem vai deixar de ser pensada e entendida; e nunca a validade deste paradoxo entre barcos cheios de decibéis e salas como esta cheia de notáveis amigos que gostam e muito de pensar, fez, para mim, mais sentido.

Um muito obrigado a todos por terem vindo. A todos os meus colegas e professores do tempo do Curso. A todos os responsáveis por este amável convite, que em boa hora para mim se lembraram de mo endereçar, muito obrigado. Uma longa vida à Universidade de Lisboa e ao Seu Exmo Reitor e a todo o corpo docente e administrativo e de alunos desta nobre instituição, um humilde agradecimento. Sapere aude. Ousa saber.

Um comentário:

barroca disse...

De todos os posts que li até agora, este foi o mais prazeroso.

Gostei imenso de te ler e imaginar as situações que relatas; mais, são absolutamente deliciosos alguns dos pormenores que revelas, de forma sincera e cândida q.b.

Inté.