domingo, 1 de abril de 2007

Arquivo morto-vivo Todos os artigos!!!

Arquivo morto-vivo

Totalidade:

Para aqui transplanto todo o meu acervo spectatoriano. Sei bem que torna complicada a leitura esta imensa mancha de palavras, mas no pain, no gain. Arrumado o passado distante e recente, podemos dinamizar este blog da forma que pretendo. Mas, achei importante enquadrar-vos com tudo aquilo que até se produziu para a revista Loud, a revista que nos abençoa (satanicamente, pois bem) com a sua sobrevivência. Por ora, a torrente...

Arquivo morto vivo

I
O medo do escuro.

“…basta que a alma demos, com a mesma alegria, ao que desconhecemos e ao que é do dia-a-dia.“ -Sebastião da Gama in O Sonho

Não cedendo à grande e correctíssima decisäo de devotar o meu esforço à apreciação do que aconteceu no passado dia 11 de Setembro nos EUA, das suas consequências geo-globais, do perigo do fanatismo religioso consolidado em poder politico/místico, dos Profetas especulativos, do sentido humano, e suas perversões e justiças, desta feita vou falar de um local mais universal, e que, em tempo de crise aguda de valores, nos diz respeito a todos nós que nascemos marcados como portugueses. Aliás o tema é tão vasto e a sua discussão tão mal conseguida, que nem uma série vastíssima destes artigos seria suficiente para meramente desenharmos um foco para o qual direccionar a nossa energia argumentativa e criativa. Quando os fins de mundos anunciados e tristemente aproximados ganham um sabor mais que gustativamente amargo, é importante reflectirmos sobre o que nós próprios, dentro dos nossos contextos limitados e infinitos representamos e como essa geografia nos pode tornar parte activa daquela máxima da revolução individual que se consolida universalmente, o proverbial “mudando-me a mim mesmo, mudo o mundo“, rídicula utopia mas único suporte da sobrevivência não subserviente. Este artigo, por exemplo, apresenta duas bases bem diferentes: a) Mais enquanto eterno viajante do que espectador, sou muitas vezes perguntado como é que os Moonspell podem fazer um música tão negra e por vezes depressiva, vindo de um país tão alegre, jovial, com 900 km de costa, paraíso terrestre,etc. Defendo sempre o nosso país contra esta imagem turística que o exterior tem de nós e que a nossa classe dita dominante promove, visando o lucro económicomas rumando a passos largos para a desertificação da nossa cultura, que ninguém poderá negar se baseia, ricamente, em alguma negritude, algum desespero e melancolia, que nos permitem apreciar mais intensamente a vida e seus brilharetes do que enganarmo-nos com falsas alegrias e velocidades. As pessoas conhecem o Sol, mas esquecem-se da profundidade que existe para além disso e que convém recordar sempre como lição de vida e da sua dinâmica mortífera. b) Um amigo de interesses comuns teve a excelente ideia de me ofertar um livro de seu nome Homens, espadas e tomates escrito por um senhor chamado Rainer Daehnhardt. Resumidamente o livro compila factos interessantes de actos de bravura dos guerreiros e exploradores portugueses por altura dos Descobrimentos. Se bem que essa bravura e inteligência seja, sublinhadamente, inflaccionada e o livro tenha sal a mais, aqui e ali, desvela uma mensagem bem importante: a do desconhecimento do nosso valor, da nossa sobre-humanidade, e da nossa fraqueza aparente que se torna, se o quisermos, força. Podemos, assim sendo, indagar se algum resquício sobra dessa essência nos que gerem os destinos da nossa nação. Infelizmente o contacto meramente visual prova-nos sempre o contrário. A descoberta de nós próprios foi substituida por um saque, que, sem hipocrisias, sentimos todos os dias. Concluíndo, e afaste-se o teor político que este artigo possa passar sem intenção, há que retirar duas coisas que me parecem importantes nesta fase bem negra e apocalíptica que se avizinha: - Não há que ter medo do escuro. Há que aprender com ele, utilizá-lo e harmonizá-lo. A Arte e o Metal são veículos essenciais nessa/dessa terapia. - Se bem que não possamos ser o guerreiro que tira um dente para carregar a arma sem munições e assim destruir o inimigo-uma das estórias do livro de Daehnhardt- há que ser introspectivo e rever sempre a nossa propriedade, liberdade e influência. Ninguém tem dúvidas que o inimigo mais perigoso somos nós mesmos e a ignorância das coisas. A essência é reapropriarmo-nos do que sempre foi nosso e por muito fácil que esta batalha pareça não o é. E só nessa importante vitória ou na mera lição dessa luta podemos encontrar a paz e a união que nos falta a todos e nos parece, tristemente, impossível.

II
Antropocentrismo radical Parte primeira

O Inverno bateu-nos à porta bem cedo este ano, com os seus contornos friorentos, inspiradores e trêmulos. Daí ter escolhido este tema para o artigo deste mês, de modo a subir a temperatura desta coluna, aquecendo-a com o fogo místico e polémico vindo do Inferno, também ele humano, e como! A saber, venho falar da indissociável relação entre o Satanismo, Ocultismo, e o Esoterismo tingido de negro e o Heavy Metal, cumplicidade que se arrasta, com mais ou menos elegância, desde a primordial origem do último termo. O misticismo e riqueza artística desta fonte subterrânea é indíscutível e podemos encontrá-la em diversas expressões artísticas, fora do universo do Metal , como o caso de celebérrima escola Satânica da Poesia Francesa liderada por vultos como Baudelaire, Verlaine, Lautreámont, e diversos outros, reconhecidos em todo o mundo literário, desejavelmente ou não- pelos próprios- com este epíteto. Como curiosidade o nosso Eça numa das suas obras capitais os Maias refere-se a estes como tal ,através do inimitável Ega, que andava no fogo das suas explosões íntimas. É, por demais, intenso e extenso o fascínio que esta personagem (o Diabo), e suas inúmeras máscaras culturais, exerce sobre a Arte e seus predilectos. Fascínio que não se explica-não o vamos tentar- mas que se sente e executa, como uma ordem superior, a que obedecemos com a autonomia característica e sanguínea deste pensamento livre. O que nós deixa aos portões de algo ainda mais complexo, mas, ainda assim, passível de uma especulação mais digna. Tal como todas as representações místicas do Homem, o Satanismo tem uma expressão primitiva mais pictórica, imagética, de celebração e ritual. Existe acerca da origem do termo Satanás uma polémica insolúvel: muitos teóricos apontam o étimo no sentido de adversário á figura de Deus, conferindo ao Satanismo um aspecto meramente cristianizado, i.e., de mero opositor ao Deus justo e bondoso; mas existem, pessoalmente, étimos bastante mais interessantes e justos, mais elegantes que conferem ao Satanismo uma vida e um sopro próprio. De significação do Cosmos, até as conotações inevitavelmente prometaicas, Satanás acaba por ser o refúgio natural do étimo da Escolha, presente em e a todos os tempos na civilização global, na sua expressão mais ínfima. É redutor associar o conceito dimensional do Mal a um termo, assim como é redutor associar o conceito do Bem a outro, já que, as fronteiras são, filosoficamente, imprevísiveis e diluídas. A utilização do termo Satanás constitui aqui o maior dos problemas, não só por todos os rídiculos mal-entendidos que gera, bem como pela acidez natural de uma palavra carregadíssima de expiação com o correr dos séculos. Retomando um pouco o percurso do termo até chegarmos à adiçao do ismo, podemos discorrer que o Satanismo se tornou cada vez mais antropológico, tomando a direcção moderna da Filosofia Maior, cujo caminho retorna ao estudo e preocupação mais directa com o Homem, o que nos parece, a todos os níveis, pelo menos justo. O estabelecimento da Church of Satan nos anos 60, nos fervilhantes Estados Unidos da altura, sedimentou, ou pelo menos documentou, esta tendência. O lançamento da Bíblia Satânica, em 1966, trouxe não novidades mas a assunção de muitos aspectos menos místicos, mais crus e reais-houve quem lhe chamasse adequadamente Senso Comum-, e como tal mais humanos, sendo um dos livros capitais-sucederam-lhe muítissimos exemplos depois- para a fundamentação de um nome mais consistente e de defesa mais eficaz contra a pequenez e susto alheio quando se profere a palavra proibida:o antropocentrismo radical. Fiquemos por aqui, esta noite, com a promessa de retoma deste assunto e de o conectar mais efectivamente com o Metal no próximo Spectator. A ditadura dos caracteres assim nos obriga e a extensão do assunto e a importância calorosa do mesmo assim nos merece.

III
Antropocentrismo radical-parte II Lucifer elétrico e falta de corrente.

Na sequência do estabelecimento progressivo e efectivo do termo- repita-se: a orientação do Satanismo moderno tem vindo a ser dedicada a esta missão de humanizar o referencial na sua dimensão de ritual, história e palavra- tomemos agora como objecto do artigo aquilo que talvez mais interessará aos possíveis leitores: a sua expressão artística, substanciada na velocidade e profundidade do Heavy Metal. O folclore e a fama-leia-se infâmia- da triologia Satanismo, Ocultismo ou, até, inofensivo Esoterismo precede e confunde-se com a biografia da música maldita do nosso século. Não só é indissociável do rock e do seu bastardo metálico, como também nebula muitas vezes a sua interpretação e orientação. Do aproveitamento à maldição psicológica, já se viu e já se provou de tudo.Seria cansativo discorrer matematicamente acerca do arrancar da cabeça de pomba branca “Ozzyiano”; sobre o claustrofóbico e azarento flirt crowleyiano de Jimmy Page, ou sobre a língua serpenteante de Gene Simmons/Kiss.Importa sobretudo não dar qualquer espécie de destaque ao desprestigiante movimento homicida nórdico, pois dos cobardes não rezará, pelo menos, esta história. Igualmente, não posso falar como um analista, como alguém escudado academicamente, sobre estes assuntos: por acaso, destino e convicção estou por dentro. O Black Metal nasce, quer se queira quer não, em Newcastle pela garra dos Venom. Venom esses que designam o termo e o chamam para si, conferindo-lhe essências que viriam a ser ridicularizadas mais tarde por pálidos adolescentes. Nomeadamente o plural interesse da banda nas manifestações ocultas na sua diversidade (Anton La Vey caminha pelas líricas de Seven Gates of Hell, assim como Manitou se pavoneia na obra-prima que toma o seu nome), assim como, um certo humor rebelde e que aprofunda a seriedade do Veneno britânico (Satan loves to crack a code and a good joke). Bebendo da lama e do sangue surgiram as bestas esclarecidas que tinham muitas faces e muito nomes como Celtic Frost, Bathory, Morbid Angel, Possessed, e que, artisticamente, pela “chata e aborrecida” fórmula musical converteram e perderam tantos através do caminho da inevitável mão esquerda. Quando o Black nórdico surge e rompe em força a lição esquece-se, usa-se o nome do Senhor das Trevas para ajustar contas pessoais com alguma contrapartida. Poucos se salvam da Anedota obscura e sem graça que se instala e infecta o Satanismo no heavy metal negro de neve. Esses poucos como os inigualáveis Emperor, Mayhem ou Thorns dedicam-se a projectar o mito faustiano de humano bem longe nas suas obras, enquanto que o grosso rebanho se engrossa na luta pelo trono do maléficozinho, da melhor pintura de guerra, e das entrevistas mais bombásticas de estupidez. A luta passa ao nível cosmético.Os dignos recolhem à toca da Evolução (vade retro!) e Subtileza. Nasce o binómio Falso/Verdadeiro, nasce a conduta satânica, nasce a cuspidela na toca. Ainda me recordo quando o iluminado Mortiis, expulso de Emperor em boa hora por não saber tocar viola baixo, nos enviou- a Moonspell-,corria o ano de 1994, uma ameaça de morte segura pelo correio. Na sua Iluminação confundia Portugal com um país africano e seus habitantes e todo o Sul como o detrito civilizacional. Apagou-se a luz nesse momento, e a sua tour de force Satânica foi para mim como que um desvelar de quão longe tinha a anedota chegado, suportada no pouco talento da ameaça, da sua impossível efectivação, e, em especial do seu desprezo pela entrega e procura da Luz, que no seu caso, se perdeu a meio caminho do seu narigudo embrião. Curiosos e imensos seriam os casos a que fui-infeliz e cosmicamente-(a oda anit-La Vey foi por demais hilariante) votado mas preciosas lições de vida para mim, como impulso de escrever e assinar em nome próprio o que isto do Satanismo tem para mostrar como prova fundamental que o Satanismo é, muitas indesejáveis vezes, um termo bacoco e de macaco d´árvore para impressionar adolescentes que pedem aos pais para lhes comprar livros ocultos como prenda de Natal. E que melhor para rematar a minha convicção profunda da humanidade do Místico, do meu insistente e gasto antropocentrismo radical? Não se esqueçam tal como o Homem erra e repôe, Satanás também o faz, e cabe-nos a nós os do Racíocinio escolher os seus filhos e pô-los a falar educadamente. Talvez ainda haja tempo. Talvez ainda haja a eternidade. PS: Para os mais novos: antropo-homem/centrismo-colocação ao centro, luz sobre a importância/radical-de raíz, sentido original.

IV

The Eternal Spectator goes to America:

Não sei se os estimados leitores viram ou se apaixonaram, em algum momento, por um filme de seu nome original “The nightmare before Christmas”, do célebre Tim Burton. Traduzido, polidamente, em português para o “Estranho Mundo de Jack”, trata-se de uma obra-prima da animação, com a fluência de um musical superiormente dirigido e interpretado por Danny Elfman, possuidor de uma voz e capacidade narrativa arrepiante. A historia contada e por demais fabulosa, num limbo em que se confundem o imaginário da Noite das Bruxas e do –mais obscurantista espírito de Natal. A respeitar o titulo, e se se tivesse optado pela tradução directa, o filme chamar-se-ia, em português, o “Pesadelo antes do Natal.” E seria, o titulo, espelho e lema perfeito para o que se passou e se dimensionou na digressão ultima que junto os Moonspell e os Lacuna Coil por terras norte-americanas. Para ser absolutamente honesto, este titulo já tinha sido utilizado há um ano atrás pelos In Flames, que, em digressão, mais ou menos por essa altura (Dezembro de 2000), tinham vivido circunstâncias muito parecidas e, macabramente, azaradas, ficando no ar um travo de maldição. Que nos parece romântico agora, sentados no desconforto das nossas suburbanas casas, mas que, on location, não foi, de todo agradável ou memorável. Como tal, apreciadores do filme, lembraram-se do nome quando viram passar o atrelado com todo o seu material a frente do proprio autocarro, indo embater com todo o material num raid da auto-estrada…Fez escola o nome, tal como o azar cósmico e terrível, do cósmico e terrível mes de Dezembro. Sendo o Spectator, mais uma presunção filosófica, talvez narrativa, aqui e ali, não me vou cingir ao mero reportar do que se passou minuto-a-minuto, pois muitos houve que se quiseram velozes e imperceptíveis. Comecemos por uma desmistificação: toda a gente sabe que tocar ao vivo, essencialmente, em territórios em que nunca se sonhou sequer marcar sequer presença turística, é uma das forças de Moonspell, e tudo o que somos, de bom e de mau, devemo-lo à intrigante e sugadora experiência da Estrada. Sabe-se do trabalho envolvido e apurado, moroso, com problemas dimensionáveis ate ao ridículo e ao desesperante. Imagina-se ainda o prazer de viajar e ao chegar à noite viajar no palco, com as muitas almas que por ai se convertem, com ou sem permissão. Inveja-se o glamour e as lendas da trilogia Sex, Drugs and Rock and Roll. Alia-se o bem português defeito de exagerar as recompensas financeiras de outrem, principalmente por que a nossa nunca e suficiente, e sim pálida perante o mérito. Justificado ou injustificado. Percorra-se agora a curva descendente. Encontremo-nos, por um momento, com as burocracias dos vistos, a humildade forçada do sorriso ovino nos check-ins dos aeroportos -para não se reparar no peso e formas dos nossos incompreendidos instrumentos de trabalho, nas noites perdidas em cálculos dolorosos, nas repetições infindáveis do alinhamento, etc., problemas típicos da nossa dimensão. Tantas vezes inflacionada no demérito artístico mas empolada na recompensa financeira. Pois e, numa nota breve, os Moonspell não vivem da música, sobrevivem do seu extremo trabalho nesta. Resta a criação e comunicação, impagáveis e incalculáveis. Mas estes problemas profundos são nossos. E apetece dizê-los hoje na voz do pesadelo antes do Natal. Uma palavra tem que ser dita acerca do contexto em que a nossa digressão foi preparada e efectivada. A Century Media USA propôs começarmos a explorar, em digressão, o álbum Darkness and Hope pelos EUA. Para isso houve um esforço concertado de promoção, de modo a seguir os bons indicativos deixados em experiência prévias em anos anteriores. Assim, mal o Darkness saiu nos EUA a digressão foi sendo marcada. O primeiro conjunto de datas foi agendado para Setembro. Depois Novembro. Finalmente ficou para Dezembro. Claro está, o acontecimento infame do ataque terrorista de 11 de Setembro mudou tudo isto. Alias afectou qualquer tipo de plano, com a feição de máximo ou mínimo. Alem do inevitável baque de fragilidade que assolou o mundo, revoltou os descrentes, e continua a escavar o abismo, os nossos planos práticos foram também eles mudados. E que importantes -egoisticamente sim!- eles eram para uma banda que com cada álbum tem que se provar aos seus exigentes receptores. Maldição ou prestigio, seja o que for, é sempre um problema a resolver. A primeira sugestão foi a de cancelar. Tudo estava confuso, perigoso até, e o nosso manager sugeriu esta opção. Todavia a sobrevivência falou mais alto, mesmo com a paranóia de Morte rápida e hecatombe que se abateu sobre todos, mesmo sobre os que não a admitem. A nossa decisão foi a de jogar outro jogo que não o de ficar em casa, temendo o latente e o invisível. Dai termos insistido em manter o plano, na medida do possível. E fomos. E ate voltámos! Com este espírito, embarcámos em direcção ao aeroporto de New York, sob vigilância tensa, mas extremamente subtil, fazendo uma viagem de nervoso miudinho, bem controlado pelo ambiente casual do staff da Continental e do seu “in-flight entertainment” que incluía ate, para meu deleite, um episodio do mítico e saudoso Seinfeld. Bom vinho tinto, também. Californiano, acrescente-se. Tudo nos pareceu normal durante o voo e a chegada. Tudo. A costumeira apresentação aos desconhecidos que iriam partilhar o nosso espaço, vida e oxigénio. A rotineira ida ao diner mais gorduroso, ritual de adaptação ao estilo veloz de vida e morte que a América do Norte preciosamente possui. Tudo, até o facto premonitório de os Lacuna Coil terem perdido o voo de ligação em Paris e termos esperado mais de 5 horas por eles. O primeiro degrau da escadaria azarada que iriamos subir. Antes de passarmos a apresentação dos azares e glórias desta pequena tour vamos dedicar um pequeno parágrafo a avaliar das consequências do ataque de 11 de Março. A consequência mais visível é o da inflação do patriotismo e da sua paralela paranóia um pouco por todo o lado. Arriscamo-nos a dizer que 90% dos carros e casas estavam ornamentadas, vestidas de stars and stripes, a famosa bandeira Americana que esgotou rapidamente em todos os sítios, alguns bem insólitos, em que se vendiam. Durante a digressão, encontramos outras provas desta idolatria, consequência directa da Guerra, sem qualquer tipo de ambiente diga-se, que os EUA vivem ou melhor procuram viver, pelo toque de absurdo, da invisibilidade do inimigo que se procura e se pode encontrar em todo o lado. Se bem que para nós, alheios uma vez mais –na medida do possível a guerra e crise- tudo isto nos pareça pintado de exagero, o facto é que se verificava por toda a parte e em todos os olhos um sentimento de esperança e de vingança. Uma ambiguidade bem típica de uma cultura nova, com tendências comportamentais explicáveis pelo excesso da juventude, nem sempre desculpáveis. Tal como o muito recorrente preconceito Europeu e de todo o mundo, nesse sentido, fazendo com que muitas vezes a inércia dos próprios países se substancie na facilidade com que se aponta o dedo ao fácil bode expiatório que muitas vezes são os EUA. Em todo o caso, estas são considerações que merecem outro espaço e outro estilo de discussão, fundamentadas na convicção pura de que, por muito utópico que isto soe, a dependência económico/militar/social é, muitas vezes, uma grande desculpa política para a falta de coragem em assumirmos e recuperarmos o nosso território e importância. Veja-se onde chegou Portugal, por exemplo. A digressão propriamente dita começou em Philadelphia, no excelente Trocadero, onde à boa maneira americana, se juntaram nomes como Enslaved e Demonic ao cartaz original, provocando um cansaço no público, que a alguns já não permitiu assistir ao nosso concerto. A partir da terceira data, no famoso L’Amour, Brooklyn, New York se assistiu a, quanto a nós, um dos melhores concertos da tour, provando que o following Moonspell cresceu em solidez desde a última vez que por ali estivemos. Nesse dia, toda a gente despertou bem cedo para tentar ver algo do impressionante Ground Zero. Todas as potenciais visitas ficaram desde logo frustradas, pois todos os acessos nesse dia estavam cortados. Consolação da curiosidade macabra foi avistar o possível da janela suja do nosso autocarro, que, se por um lado foi insuficiente para aplacar o momento, não deixou de ter um toque impressionante. Descrever a enorme falha na silhueta de Mannhatan, como uma boca abissal privada da sua língua e dentes frontais, com a visão, talvez imaginada, de um grande painel branco que se estendia de extremidades indefinidas da cratera, como lição não aprendida de Paz e do dispensável medo de Deus. Longe desta vista, bem no coração nova-iorquino, o L’ amours recebia essa noite suada,uma verdadeira maratona de bandas, parecendo uma espécie de formigueiro de seu tom atómico e obscuro, com a fauna nocturna da cidade que nunca dorme, fazendo jus ao frenesim da corrida entre palcos, resistindo ate o fim, e tornando a vida dos Moonspell bem mais fácil que em outros sítios pela entrega elogiosa e voluntariosa. Tivemos a grande honra de receber a visita do nosso amigo e camarada Peter Steele, de humor negro apuradíssimo, língua afiada, chupando um lollipop de cereja, prometendo uma visita a Portugal e acima de tudo impressionando como sempre pela resposta bem armada, seu séquito feminino e a amizade genuína com que honra Moonspell. Feitas as despedidas, ficou o convite de Steele para lhe telefonarmos next time we are in town para que nos possa levar a jantar genuína American bad food. Sem dúvida. No fim do concerto seguinte, em Worcester, perto de Boston, os vidros do nosso camarim começaram a dar o alarme para a tempestade de neve que se aproximava, desde o inicio do dia, subtil mas perigosa. Sob ela começámos a viagem ate ao Canadá, para os concertos seguintes em Toronto e Montreal. Cansados ainda da maratona nova-iorquina, todas almas tiveram um merecido repouso ate ao sinal de acordar que seria dado pelo nosso tour-manager de modo a acordarmos com um ar simpático o suficiente de modo a passarmos, com distinção e eficiência, a sempre terrível fronteira canadiana. Esse sinal, dado poucas horas depois, viria a ter o sabor amargo de uma revelação: a de que o nosso autocarro tinha partido a transmissão, e que estávamos presos numa remota cidade em New Hampshire, chamada Concorde e que os concertos canadianos, tão aguardados por bandas e público, eram agora uma miragem na neve e distância que nos separava. Revoltados, conformados, desiludidos, enfim vivendo agora em tempo real o pesadelo, entramos num hotel colonial, que se dizia assombrado, comemos num restaurante mexicano, cujas salas eram celas, que se diziam assombradas, mas cuja promessa de assombração nos pareciam inofensivas perante o que nos tinha acabado de acontecer. Para não perder o dedo, os Moonspell fizeram algo de escandaloso e inédito: tocar um set de três musicas em acústico, num bar local, apropriadamente chamado Pannuci’s, numa noite de “open microphone” sendo pagos em má cerveja Americana e tortilla chips. Os locais agradeceram e até correu o boato, inacreditável, de que os Scorpions tinham descido à cidade… A partir dai, tudo foi confuso, com mudanças quase diárias de casa/autocarro, com jogos de arrumação de material que tinham parecenças terríveis com o célebre jogo Tetris, muitas noites sem dormir, muita velocidade, com concertos pelo meio do quais se destacam o de Illinois (Aurora, perto de Chicago), e o de Milwaukee, localidade do mais antigo Festival de Metal nos EUA, cujas reacções e lotações ultrapassavam as nossas melhores, no nosso sombrio contexto, expectativas. A partir desta data recebemos o nosso último autocarro que nos acompanharia até ao fim. Um autocarro que era uma verdadeira peça de museu, com um buraco a descoberto no porão, que provocava uma impressionante onda de frio, quando em andamento. Resultado: um autocarro, galé, sob o qual o espectro da gripe desceu sem piedade para os seus ocupantes, que se entretinham e aqueciam muitas noites ao som do furioso metal americano, um slam dance improvisado e o sempre bem-vindo Jack Daniels, como fornalha interna e absolutamente necessária. Este veículo, cujo peculiar condutor Romeo- um Steve Mc Quinn, versão Rock de bota ,se divertia a dar choques de 200.000 watts no seu grande volante de borracha, levou-nos então ao concerto final, em Los Angeles, esgotado havia algumas semanas, num sitio imundo chamado Fais-a-do-do, um restaurante vestido, nessa peculiar noite, de negro rock e gótico chique. Para trás ficavam os sustos dos ingénuos espectadores de Minneapolis quando confrontados com um vertiginoso mosh pit durante a Firewalking, as casas de banho com o alvo Bin Laden no urinol - resulta em pleno- , a visita ao maior centro comercial do mundo (Mall of America), leia-se, uma colossal perda de tempo, a paz de Denver e a sua fraca oxigenaçao,o pneu destruído no Nevada, os ilustres de S. Francisco e por fim a apoteose dental em L.A. onde tive a oportunidade memorável de arrancar um dente, 2 horas antes do concerto, com 10% de anestesia visto que se tivesse levado a dose exacta, não conseguiria articular palavra durante três a quatro horas. I left a bit of me in LA… Para lamber feridas e aguar azares a Century Media levou-nos a passear na cidade onde tudo é maior e mais interessante nos filmes: sim, vimos as pegadas dos famosos, as suas estrelas, o pedante bar Rainbow, a capitalista Universal walk, mas sempre com a mente bem orientada para voltarmos ao nosso covil luso onde azarados mas seguros preparávamos a viagem a Rússia, ex-inimigo virtual dos EUA,com vontade de voltar, mas melhor protegidos e fornecidos de mezinhas, pulseiras, berloques, ou simplesmente pela convicção pura de que depois da conquista heróica que foi esta digressão, termos desenvolvido os anti-corpos necessários para tudo o que vier futuramente, e gozar, francamente o que, para além dos pesadelos e sonhos, pode ser a melhor ocupação passional do mundo: ser um sobrevivente.

V
Alvo em movimento:

Confesso que, bem à última da hora ( e com o atraso desesperante devido), mudei o rumo, o foco e o espírito ao meu artigo deste mês. As razões, como sempre, prendem-se com uma noite perdida. Não na noite, infelizmente, mas no reduzido rectângulo do meu leito e do silêncio suburbano, riscado pelos alarmes dos carros, pelas risotas com cheiro e sabor ácido de cerveja em promoção, pelo civismo putrefacto de quem não sabe e é obrigado a viver em apertada sociabilidade. No processo intervieram muitas coisas: conversas entrecortadas, uma canção especial de Mão Morta (Tu Disseste -o que é que isso interessa? Nada.-), o feedback seguro que tenho tido ao Spectator, em especial ao seu mirabolante passeio Americano, aquilo que eu sou e me torno, e, em essencial como o comunico. Na minha agenda interior, com a qual falho mais do que gostaria, tinha previsto para este mês um artigo de seu nome O Pecado não-original que, na senda dos antropocentrismos, se imiscuía por derivações religiosas. Neste caso em particular, num levantamento breve das cópias rudes que a cultura da Cruz decalcou de outras civilizações para construir/deturpar os seus mitos propagandeados como únicos, célebres e originais. Enfim, dizer por palavras rebuscadas e paralelismos filosofais que o Cristianismo é uma cópia de sistemas mais antigos, eles próprios revistos e originalmente criados pelo Homem, adivinhando vosostros o que se seguiria. A pertinência e o interesse, leia-se, impacto destas considerações presentearam-me então com uma vigília pensativa. Adicionei a tal vigília e suas consequências, cedências e sedimentações uma frase que o meu ilustre colega e cúmplice ocasional A.Freitas me disse após o nosso último concerto em Lisboa, no Garage. Depois de me dar os parabéns pelo meu artigo sobre a tour dos EUA confessou-me, brevemente, que os outros artigos eram complicados, e como tal, percebi eu, de pouca atracção, autistas se me permito acrescentar alguma exactidão. No cálculo considerei ainda as reacções que tive a todos os artigos até agora, tudo o que escrevi e documentei até agora, e, fundamentalmente, a capacidade ou incapacidade de adaptação que tenho a uma causa, um projecto,a uma ideia. Muitas dimensões explodem neste sentido, neste dilema. Algumas certezas também. Vamos dar-lhes alguma luz. Quando fui convidado pela Loud fiquei honrado. Pelas pessoas que formam a Loud. Pela independência que a Loud já tem, a vida própria além da vida dessas pessoas. Como tal, o conceito da Loud merece-me o maior dos respeitos. Óbvio que não ignoro que um artigo da estrada,substancial e interessante (na desgraça detalhada) como o Spectator na América, respeita e inscreve-se, como a luva de picos na mão, neste conceito, nesta imagética. Artigos teológicos, filosóficos, com o seu bolor e esplendor sempre agarrados, terão mais dificuldades no entranhar, sendo mais proveitosos pela sua estranheza. O dilema agudiza-se quando, e pela grande experiência que tenho nesta área- conseguida a custo da incompreensão e identificação muitas vezes impropriamente balizadas-, implica com uma convicção muito pessoal que nunca deixei de exercer e aconselhar- apesar de detestar a figura paternal de conselheiro. Em suma, esta questão não me deixa de preocupar. Tenho um exemplo muito vivo e importante na minha carreira pessoal com Moonspell: o albúm “The butterfly effect”. Muitos dos nossos receptores reagiram com cautela e desânimo a este disco por ele ser muito complexo e difícil. Estou a citar com honestidade. Sendo a arte de escrever um misto de egoísmo e de comunicação, esta duplicidade complica as coisas e as avaliações que em cada momento estes elementos devem merecer. O valor que lhe devemos dar, em boa e justa medida. A convicção pessoal de que falava há pouco era a de que sempre pensei, muito mais, acreditei que deveria escrever sobre tudo, a todos os níveis de complexidade ou singeleza possível sem nunca pensar que as pessoas que devem ler ou sentir sejam capazes ou incapazes de perceber ou perecer perante o assunto e sua forma comunicada. Seria talvez colocar-me num pedestal que não mereço e votar as pessoas a um grau de mero espectador esforçado, sem dimensão própria. Por outro lado, percebo os contextos, e os atractivos destes. Problema que espero ter tornado claro. Dilema para o qual não peço a vossa ajuda mas muito mais a vossa reflexão. Até porque sei que os meus assuntos e tudo que eu possa comunicar são alvos em movimento. Até porque sei exactamente o teor dos meus próximos artigos na Loud. Considerem este como um porto de abastecimento, um intermédio de vir à tona e respirar um pouco na pausa. Até porque sei fazê-lo e sei da sua importância. Até porque sei que só nos perdendo muitas vezes conseguimos encontrar os caminhos que nos são próprios e que nos são queridos.

VI/VII

O balde de caranguejos


Este será, porventura, o artigo que terá possibilidades de gerar a maior polémica mas também será por causa deste que todas as pessoas que dedicam o seu tempo e energia a estes problemas a reflectir mais ordenadamente sobre eles, com maior concentração e empenho.

Será esta peça que me exigirá a maior isenção de sempre. Que, confesso, não sei se será conseguida por completo. Não que ela seja absolutamente essencial a uma coluna de devaneio e opinião, mas seria bem útil para a fluidez de comunicação que procuro hoje. Resumindo: este é a sério. Pode doer, álcool sobre a ferida, com o seu quê de cura, espero eu, senão falharei redondamente com os meus presentes objectivos: que se elevam muito longe de uma mera maledicência. Que pretendem ser muito mais que uma exaustiva compreensão dos males da nossa cena musical, que pretendem reconhecimento, arrependimento e olhar para um futuro mais sólido e sobretudo mais solidário.

Vamos a isto:

Se há algo que rivaliza com a beleza, dimensionalidade e vivacidade de Portugal é a sua ingratidão e falta de visão. Eça de Queirós descreve Portugal na perfeição no término deslumbrante da sua obra A Ilustre casa de Ramires:

“-Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês (…) quem ele me lembra?
– Quem?
– Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade(…)Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia…A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?… A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar…A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades…a vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo…Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa… Até aquela antiguidade de raça(…) Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
– Quem?
– Portugal.”

Inúmeros são os exemplos factuais desta tendência ou doença tipicamente lusa de expulsar de casa os seus filhos pródigos. De viver nessa regra e permitir a excepção, a respiração interna muito poucas vezes. Fazer disso, infelizmente, uma regra também ela dura e incontornável.

Que o digam todos quantos foram descobertos pelos lá de fora, raptados pelos aliens na perseguição de um sonho e da sua realização. Que o digam os nossos melhores jovens cientistas a trabalhar a soldo de Universidades americanas, contribuindo para enriquecer ainda mais o seu património científico e escavando mais o fosso com a cauda da Europa; que o digam os investigadores; que o digam artistas vários; que o digam todos os agentes que gostariam de contribuir para sairmos do subúrbio Europeu, para que nos vejam a alma nua e brilhante para além dos 900 km de costa, a boa gastronomia e a vontade (cada vez mais amarga) e o saber de bem receber, dando.

Numa edição da Pública (revista anexa ao Público de Domingo) Carlos Cruz definia Portugal de forma cruel mas exacta. Não me consigo recordar fielmente das palavras mas rezava, aproximadamente, assim: “Portugal é o país onde as pessoas vão à Opera para ver a solista desafinar. Ao futebol para ver o avançado falhar a grande penalidade. Ao Teatro para ver o actor falhar a deixa.”

Infelizmente, e com tristeza, há um consenso gerado por estas palavras que são uma extensa introdução ao cerne do artigo que nos trouxe aqui todos hoje. Num futuro próximo (o mês que vêm) todo este manancial de pessimismo mas realidade será reposto, tendo como pano de fundo uma incidência particular e atenta ao panorama Heavy Metal, que sofre deste mal de formação e que pretendo, não extirpar(impossível), mas falar sobre, de maneira isenta e séria.

“Se a musa me ajudar neste trabalho…”

O balde de caranguejos. Parte Segunda.

Agora que os horizontes sedativos do futebol foram quebrados de vez, resta-nos voltar à nossa infeliz normalidade enquanto povo. Que se resume em grande parte, hoje em dia, a olhar a morte lenta do nosso país por dentro, como personagens condenadas a rolar pedras e cair de montanhas (emprestem-me brevemente o mito) que, inevitavelmente, tornaremos a subir; a chutar a bola sem alma ou vigor amaldiçoando a Má-sorte, a estrutura, tudo quanto suavize a teimosa tendência do português, pelo menos desde Alcaçer-Quibir, falhar no momento certo e fazer da excepção a nossa trágica guerra.

Não quero assumir, embora também me apeteça, um tom futebolístico nesta peça. No entanto, não tenho um horror gótico ao desporto. Pelo contrário. Sinto o seu contágio. O futebol é irracionalmente belo e derrapante. Mas a indústria há muito engoliu os valores. O suor na camisola é coisa do passado e do provérbio. Não fabricou já a Nike um modelo (usado até pela nossa selecção) que impede a retenção do suor e oxigena o corpo. Talvez fizesse falta. Talvez fizesse lógica esse sal.

Mas todavia o período traumático pós-afastamento é o balde de caranguejos por excelência. Com jornalistas crustáceos, treinadores de bancada de seis patas e afins a subir por ele acima.


Longe de mim cair no erro de subir o balde. Este artigo e coluna procura sempre cismar nas coisas remetidas a silêncios ou ruídos demasiados. E de como combater os estigmas. E verificar na sequência como a citação de Eça de Queirós (v. Spectator anterior) faz todo o sentido.

E se o artigo passado foi fértil em citações, este será fértil em situações de que todos fomos espectadores e até casuais personagens de vez em quando.

Situação primeira:

Festival de bandas underground. Portugal. Qualquer sítio. Hora: começo às dignas 19.00 A banda mais vigorosa e nítida do pacote encerrará o dia. So far, so good, so what? A maioria do público desloca-se para tal momento. Outras bandas para descobrir. Se estas o deixassem.

Os problemas começam. As costas são as primeiras coisas que se voltam. Tem de haver soundcheck para todos por igual. Razão? Não se sabe. Febre de importância, talvez. “se Eles o fazem, porque não eu?”, pensa-se. Tensão começa. Managers amadores, exaltados defendem territórios que tão pouco existem. A amizade mascara-se de Defesa. Fala-se muito. O trabalho é inversamente proporcional. A união não se faz. Nem tem a força.

Período de acalmia. Insatisfação, ruminação. O concerto arranca ! As bandas arrastam-se em palco. Afinal tem os seus quinze minutos de vingança. O orgulho embrulhado em palas asininas ultrapassa os sagrados minutos consagrados à sua actuação. Os último que se danem. Não fossem importantes. Não fossem capazes. Admite-se aqui: não fossem melhores. A criar e a comunicar. Chegámos ao fim. Da paciência. Do concerto. Pessoas que há muito desistiram fazem a colheita: ela é a do cansaço. Sombriamente familiar.

Poderíamos adicionar aqui o fraco profissionalismo da equipa de som, o favoritismo de quem joga em casa e se transforma a cada cinco minutos em organizador-artista-autista-organizador, mas tudo isso deveria ser periférico. Se a alma dos intervenientes assim o desenhasse.

Situação segunda:

Chamemos-lhe a minimização. A obsessão em explicar tudo o que, em esforço glorioso, o outro consegue por palavras suas. À sorte tudo se joga, ela tudo explica. À estrutura, o monstro sagrado da desculpa, que tudo faz correr. À gota de água que muitos são ainda e não deixarão de o ser talvez. A mesma gota que forma as grandes massas de água e a estrutura complexa do sangue. Pergunta-se os Gregos Antigos não tentaram traduzir tudo em unidades básicas (em séculos de Luz, progresso e registo) que hoje em dia simplesmente explicam o Mundo e o Homem. A importância de ser pequeno.

Chamemos-lhe sabotagem. A sabotagem da luta fratricida. A sabotagem do Norte, do Sul, dos leprosos falsos e dos temíveis justiceiros da Verdade. Da maledicência. Da dedicação à causa do bota abaixismo. Do queimar de páginas e páginas a falar dos outros menosprezando o seu projecto e sonhos. Que parecem que acabam onde os dos outros se constroem. Tal como a liberdade. Tal como a raridade de ver e apreciar o que é gritante e se afirma pelo grito: o projecto, a força, a alma, a inteligência, a raça. Não, não é um anúncio de automóveis. É a realidade que explica a outra realidade.

Situações:

Enfim, o sonho vivido dos outros será sempre o pesadelo da cena portuguesa. O amigo tem a duração de nos podermos sentir igual ou superior para com eles. A diferença é a estranheza a evitar. A vitória: sabe melhor nas ficções.

O que é isto do balde então? Se o tivesse explicado antes não teria chegado aqui ao fim do artigo. Nem sequer o tinha iniciado. Mas guardei para o fim a sua explicação: reza a ciência, que aqui quase é lenda, que se num balde de caranguejos um decidir escapar e começar a subir sozinho balde acima, em direcção à conquista da liberdade, ao seu sucesso enquanto caranguejo (sobreviver ao imediatismo do prato), todos os outros caranguejos se solidarizam e fazem uma pirâmide “caranguejola” até que o primeiro (do topo) consiga agarrar o fugitivo. E puxá-lo para baixo. Durante eternidades.

Isto faz-me pensar não só no óbvio instinto destrutivo em puxar para baixo, mas também o porque de não serem solidários na fuga, em fazerem a pirâmide para todos subirem por ela ao invés de por ela descer o visionário, caído, partido, uma vez mais anónimo.

Sim, faz-me lembrar a cena portuguesa no seu pior. No seu normal. Porque o pior do Português não é não saber perder. É não saber ganhar.

Been there. Done that,


VIII

The silly season. The silly us.


Estamos chegados à época descrita, socialmente, como a “silly season”, isto é a época de anestesia veraneante, de escapadelas para confortos fáceis, espumantes, frios e escorregadios, do intercâmbio de preguiças e das depressões nervosas que destilam ao calor do nosso cada vez mais perigoso Sol ocidental num areal mais ou menos ocupado da nossa longa e fleumática Costa.

Estamos chegados e encalhados perante a decisão do que não deixar de fazer. Ou seja, vamos eliminando coisinhas das nossas agendas até chegarmos ao mínimo laboral que nos permita sobreviver e nos deslocar até aos atractivos mais próximos. Empilhamos coisas sobre coisas para a rentrée sempre fatídica de Setembro. Sorrimos em antecipação de um futuro mais brilhante após descanso e banhos, após ilusões de relaxe. Não vamos pensar agora nas coisas que iremos deixar apodrecer nos nossos frigoríficos e nas nossas mentes. Vamos directos ao Sol como insectos atraídos pela luz. Vamos deixar para amanhã o que podíamos fazer hoje. O profissionalismo nunca se superiorizará ao portuguesismo. Ao fim e ao cabo os outros Europeus que vivam para trabalhar. Nós trabalhamos para viver.

O Verão para mim, desde há alguns anos, tem o mesmo efeito que devem sentir, com a devida vénia, aqueles vagabundos dos filmes Americanos que espreitam às janelas descuidadas das famílias trinchantes de peru na ceia de Natal. Aquela inveja partida por dentro, aquele calor que nos percorre os ossos como um dum duche bem quente após uma dia à chuva. Mas sinto sobretudo o dilema entre aquela liberdade que já foi, competentemente, discutida em sociologia sobre os vagabundos por opção de desprendimento do material (a nova ataraxia) e o de sermos, todos hoje, obviamente convencionais enquanto seres cercados de caminhos barrados por comuns e intransponíveis (mas passíveis de empurrão!) fronteiras.

Aliás, falando de dilemas: hoje quando acordei (tarde, para grande angústia minha)
vi--me a braços com o dilema que de vez em quando constitui o Spectator para mim. Depois do balde de caranguejos, o que fazer para que a seiva/sangue corra ainda com pertinência nesta privilegiada coluna? Aliás (pela segunda vez, perdoem-me os formalistas) já tive oportunidade de lidar com este dilema aqui noutra ocasião em moldes mais gerais. Aliás (a terceira e última permitida vez pelo bom gosto e gramática), o dilema era outro hoje: o de se a acidez do balde se seguiria a doçura algo entardecida de uma composição mais poética, mais éterea com que comecei a manhã, ou aquela peça sobre os canais de conversação do Metal cujas curiosas conversas e personagens me tem suscitado assunto nos últimos dias. Bem, decidi-me pelo caos. Fica sempre bem. Sabe às férias que felizmente não vou ter.

Enfim nas coisas para fazer nos próximos dias só há lugar ao ditatorial congelamento de Verão. A imobilidade que nos provoca o calor. O resto do ano será usado para derretermos. A ver se algum ouro cresce dos nosso projectos. Progressivamente vamos nos fundindo com esta subliminar mensagem. Caranguejos, hoje em dia (e para quem gosta) só no prato; heavy metal ? só em festivais de Verão servidos por má cerveja;
pesquisas e insondáveis tristezas? só murchando no optimismo desse cancerígeno astro solar, tão próximo de nós agora.

Ansiando pelas mortes nas meias-estações me despeço. Vou ler e dormir, sentindo-me pequeno a todos os instantes. Algumas rotinas não se podem quebrar.

Spectator is out for vacations. (…)

IX

Trash Metal

As recorrências são um fenómeno curioso nas nossas vidas e percursos e a maneira como lidamos com elas será sempre algo de imponderável porque todos nós temos grandes dificuldades em lidar com o passado. Seja a esconder vergonhas ou a assumir orgulhos. Mas nós, pelo menos, criamos os nossos imortais e sempre vamos empilhando, com mais ou menos jeito, as nossas eternidades ou pequenas olhadelas ao proibitivo “o que está para lá” de tudo e de todos.

Uma das minhas preciosas eternidades é a obra dos suecos Bathory que me ensinaram a personalidade do misticismo, de que existe um cérebro e uma alma simultânea que gere o genuíno e que ultrapassa o físico e as limitações do mesmo. E que se consegue visualizar o impossível mesmo no meio do turbilhão do comum, ao seu grau mais ínfimo e inacreditável.

Os meus primeiros tempos a ouvir Bathory foram, como é óbvio, marcados pelo espanto e por uma certa credulidade para a qual muito contribua a mística e a saudosa falta de informação dos Oitentas (admito). Tudo o que se arranjava era de altíssima prioridade e estimado com requintes de relíquia. Todos eram coleccionadores e tudo se fazia com pouco dinheiro mas com muita imaginação.

Os tempos encarregaram-se de nos retirar essa pureza. Afinal ela já não existia no mundo e os submundos de alguma forma tomam este como modelo de oposições, rebeldias e imitações mais ou menos conseguidas. O tempo se encarregou de me provar coisas que talvez adivinhasse, coisas que tive o privilégio de viver e por elas até morrer de vez em quando. Bathory era como um catalizador de todos os pequenos e grandes misticismos e soube, talvez sem o querer, passar esse protagonismo aos seus seguidores fanáticos mas extremamente voluntariosos.
Os rumores eram imensos, forjavam-se piratas, canções, concertos ao vivo, ordenavam-se itens das infames Bathory Hordes que demoravam semestres a chegar da agora tão próxima Suécia, descobria-se -com orgulho diga-se- que se os prints dos fabulosos ícones de Bathory eram suecos, do Inferno até, o algodão era, como dizia a etiqueta, de Portugal!!! Enfim, recorria-se à imaginação.

Talvez não seja de todo ajustado mas deixei de acreditar cedo que os artistas, neste caso o mentor Quorthon, fosse uma besta apocalíptica e esclarecida como poucas (até o conheci num grato dia de 1989!) e que tudo o que fizesse exigiria retiro adequado numa floresta, num recôndito rochedo à beira-mar, num castelo, nas asas de um dragão ou no bico fantástico de seres alados da mitologia. Tal como sei hoje o processo de criação é fundamentalmente interior, aquela maldição exigida e exigente de não pararmos de pensar, registar, observar e sentir e sermos apanhados desprevenidos, pela nossa obra-prima no mais insólito dos sítios e das situações, no meio do insensível máximo, do volume das ruas e dos limites da nossa liberdade: os outros. (grande parte da Vampiria -com alguma pena minha- foi escrita no Metro a caminho da Universidade de Faculdade de Letras).

Não sei se o confessei a muitas pessoas mas depois de ler o folheto do álbum Blood on Ice (álbum quase apócrifo de Bathory, lançado em 1996, se não me engano, mas tematizado em 1989, por alturas do épico Hammerheart), pensei porque não escrever sobre este peculiar processo de isolamento que é criar e como a maior parte das vezes o contexto em que estamos não se adequa aos sentimentos transmitidos e absorvidos pela obra?

E se um dos meus absolutos mentores confessa que gravou obras primas como Blood Fire Death e Hammerheart, com atmosferas nunca igualadas por ninguém dentro deste estilo, no meio de roupa suja, desperdícios, partes velhas de carros, e outra nojenta filigrana, pois o famoso Heavenshore nunca passou de uma garagem -que funcionava como tal em horários de expediente- bem no coração de uma floresta de pedra nos subúrbios de Estocolmo?

Afinal ninguém se enganava. Quorthon, tal como os seus seguidores, era um acrobata da imaginação. Vendo drakkars a aportarem e bruxas a serem liquidamente julgadas, maravilhosamente compostas e entregues nos seus discos, tudo isto no meio de lixo e mais lixo.
Dando razão aqueles artistas que trabalham a partir da sucata. Dando razão àquelas flores que nascem da lama. Provando cabalmente que no nosso interior entra quem e o que queremos, e que convidamos a sair somente aquilo que queremos: do lixo para a imortalidade, da posteridade para a porcaria.

A propósito nunca me deu tanta vontade de escrever ao Quorthon Seth e dizer-lhe isto. Para lhe dizer que o subúrbio citadino continua com alma e que a colheita da lama tem sido boa e promete encher mais corações.

X

“Nós somos como anões aos ombros de gigantes”

Sei que incorro no pecado arrevesado da teimosia mas devo dizer-vos, àqueles que me acompanham todos os meses mais ou menos fielmente; e aos que navegam iniciaticamente neste canto cujos meses e conteúdos ditam a sua obscuridade, que também desprezo um pouco as regras/mandamentos literários e faço de tudo, menos jogar baixo e sem trunfos, para comunicar as minhas ideias e delírios com força, consequência e clareza.

E, já o perspectivavam os Antigos de forma bem mais agradável que os Contemporâneos, para passar mensagens ou coisas (que conceito este o da coisa, não?), tem-se que dizê-las muitas vezes. A repetição também pode ser bem feita e conseguida, basta concentração, esforço e muita experiência sequencial. Construir uma rede, complexa o suficiente para distrair e não dispersar, para aguentar e não massacrar, é um acto bem difícil e penoso. Eu, pelo menos, não aguento mais que estes dois parágrafos.

A minha teimosia hoje consiste em repetir que não conheço, -já procurei- género musical mais literário que o Rock e seu nobre e superior derivativo Metal. Nem preciso de ilustrar. Senão os vossos olhos nem passavam, ou passeavam, por aqui.

Daí que me traga poucos problemas dizer-vos que tive a ideia mensal para o Spectator às páginas tantas de um livro que me sugeriu as ideias a comunicar e me emprestou o sentido. O autor, o celebérrimo Umberto Eco, viajou até à América à procura do Falso Absoluto e compilou as suas visões e impressões já de si superiores num volume a que a editora Difel chamou, um pouco ingenuamente, Viagem na Irrealidade Quotidiana. Esse intenso passeio suscitou as mais preciosas ilações e dimensões sobre a Imitação fidedigna como forma de conservação, sobre como o mundo moderno recria, tentando superar, o Mundo Antigo e de como o sabor do Antigo ainda vale sobre o mentolado e fresco Falso Absoluto; tecendo até comentários que nos abismam pela sua exactidão futurista.

Num capítulo muito interessante dedicado à apreciação da Idade Média, enquanto período dinâmico e estruturante de uma Nova Idade Média -um misto de lúgubre e iluminação, não diferindo da primeira, segundo Eco- diz-se:”…nosso século, em que o filósofo ou o cientista que valem alguma coisa são exactamente aqueles que trouxeram alguma coisa de novo (e o mesmo, do Romantismo e talvez do Maneirismo em diante, vale para o artista.)”

Achei esta passagem excelente até para ilustrar a polémica residente do Metal entre o grupo que faz o novo e o que repete o velho, tal como o copista Medieval (que segundo Eco acrescenta sempre) ou o vanguardista Renascentista (irá mais longe?).

Curioso é que se segue ligada a este raciocínio uma frase muito conhecida (já agora proferida por Bernardo de Chartres durante no séc.XI): “Nós somos como anões aos ombros de gigantes” a que Eco acrescenta “os gigantes são autoridades indiscutíveis, muito mais lúcidas e clarividentes que nós: mas nós, pequenos como somos, quando nos apoiamos sobre elas vemos mais longe.”

Decalcando isto para muitas polémicas de vida e de música do género ovo/galinha (apesar de em latim sempre se dizer ab ovo- desde a origem…) fez-me reflectir sobre a estupidez e perda de tempo que é discutir progresso e repetição como termos antagónicos. Sim porque ninguém se atreva a duvidar do nanismo inerente a fazer música nos tempos em que correm. Como também não se pode menosprezar o sentido da escalada e a luta contra os acidentes que nos esperam até chegar aos ombros dos nossos gigantes. Gigantes que até se calhar já foram anões com talento hipérbole e se regaram com as mais convulsivas chuvas e se adubaram com as sementes da mais pura eternidade artística.

Quanto a mim duas ressalvas finais:

- faltam as conclusões a estes Spectator, ou pelo menos o tom de certeza com que gostaria sempre de transmitir. Explicável por ainda não ter conseguido me manter equilibrado nas costas do gigante e ver os horizontes das diferentes perspectivas que este belíssima vista me oferece.
- A assunção de que não tenho vergonha de me pôr às cavalitas seleccionadas deste ou daquele vulto, ou de desta ou daquela sombra. A Vida(gémea malvada da Arte em estatuto de permuta permanente) não passa de uma grande escalada e sem dúvida que uma montaria nobre, útil ou até inspirada calha-nos bem, sabe-nos bem e fica-nos bem.

Ride on!

XI

With faces like ours who needs Halloween?

Esta era a frase imprimida numa t-shirt dos Type O Negative, merchandise oficial de uma longínqua digressão que fizemos juntos. Hoje transplantei para aqui o seu humor e sentido, já que me parece ( e o tempo o confirmará -tal como a todas as outras coisas) que esta vai ser a minha única maneira de assinalar este evento, esta resistente lembrança de tempos idos de Liberdade e que arranjou forma bem estranha e perversa de se perpetuar e de se fazer celebrar até hoje.

Com caras como a nossas, quem precisa da Noite das Bruxas ? será sempre uma cabal demonstração do grande sentido de humor da banda de Halloween por excelência, Type O que consegue ter graça e cair em graça ao mesmo tempo. Sei que quando sair esta coluna (datada por um incontornável correr contra o tempo), o esquecimento veloz dos nossos tempos e dos nossos contextos já terá coberto de terra a negra efeméride e que aos engraçados vampiros e bruxinhas das montras se sucederão os resquícios de S. Nicolau e outros íconezinhos de doçura e paz do sempre mentiroso Natal. Mas a alguns dias da Noite das Bruxas (em plena feitura do Spectator) parece-me ainda bem ouvir Type O toda a noite, enquanto leio outros capítulos da fabulosa obra de Ray Bradbury The Haloween Tree. Com a diferença que os miúdos do meu prédio não se atreverão ao feliz incómodo de me pedirem doces ou de se habilitarem ao susto da vida deles.

Com Moonspell, tentámos manter uma tradição de tocar todos os anos nesta data. Infelizmente este ano começo o hiato (que se quer muito curto). A tradição levou um golpe à nascença, sofrendo, como todas as boas tradições, às mãos da célebre ditadura de um contexto económico/social, que leva os promotores de espectáculos à cobardia do jogar certo, do económico Halloween cool e dançante, que, deixem-me que lhes diga, nada tem de pagão nem que se. O herbal é comercial. A Natureza não se quer em comprimidos.

Outra ditadura mais feliz: a da criação e descoberta afastou-nos do rumo de fazermos nós próprios (como imaginávamos) algo, de pequeno, grande, médio, distante, whatever, mas sempre celebratório. O nosso albúm novo engole-nos sem piedade e a nossa visita à Grécia deu o golpe final num projecto que nos tomaria todo o tempo e sugaria toda a energia.

Mas o que me despertou a curiosidade, acima de tudo, foi ver, como hoje em dia, o Haloween se manifesta e implanta em Portugal. Basta dar a inevitável e triste volta de animal de consumo por uma das sufocantes superfícies que brotam como desinteressantes cogumelos pelo nosso país, para ver as montras decoradas com um terror saudável, inofensivo e pura e simplesmente irritante. O Medo está, definitivamente, em baixa. O que leva a pensar algumas outras coisas:
- Portugal nunca teve verdadeiramente tempo para deixar respirar o Paganismo. Desde a sua formação que é um país Cristão. Juntamente com Itália e Espanha tivemos quase três séculos de Inquisição (não acham temível Portugal só deter recordes infames?). As poucas religiões naturais entre portas foram alvo de estudo sério só por parte de iluminados (ex :o Prof. Leite de Vasconcelos) e ainda hoje em dia se querem respirar esse ar, têm de pedir autorização a um amarrotado Presidente de Junta do Interior (Sul, Norte é irrelevante) que tem medo que lhe pisem as ruínas com que ele chantageia o poder Local (encabeçado por aqueles que equacionam a hipótese de usar essa excelente pedra de ruína para fundar um novo espaço de sufoco comercial - v. CC Chiado-).
- Portugal, apesar do seu original potencial, é um imitador. O nosso Halloween é importado. Em 100 pessoas 99 comprariam uma bruxinha animada, que faz bolinhas pela boca e diz abracadabra ao filho para os deixar em paz enquanto tentam furiosamente acabar os livros (comprados no Continente) da Marion Zimmer Bradley ou do eleito Tolkien. A outra leria o Portugal Simbólico, ou arriscaria uma visita a Odrinhas, ou algo mais selvagem e pouco estabelecido. Essa unidade é o que resta um do lusitano. Do (a)pagão.
- Sei que nos meio destes prédios, que arrancam a cada minuto do nosso chão mutilado, é difícil manter qualquer chama acesa (as narinas dos nossos vizinhos fungam bem alto, chegam bem longe) mas uma vez li (algures) uma frase ecológica: I am a tree. E isso fez-me, outra vez, pensar se o Paganismo se limita à manifestação simplesmente, ao convívio físico. Sei que não, apesar de ele ser tão essencial, por completar o círculo que se inicia ( como todos os outros) no pensamento.

Para concluir (já vai longo) encontrei essa chama na nobre actividade que a FNAC Chiado tem vindo a manter desde o ano passado: o mês temático Outubro Negro, do qual tive a honra de participar como convidado, este ano, num colóquio sobre HP Lovecraft. Colóquio esse que foi muito mais uma amena cavaqueira durante três horas, abrilhantada pelo excelente Sr. Nicolau Saião, um gentleman de Portalegre, que teve a gentileza de traduzir para português poemas do autor, compilados num livro chamado Os fungos de Yoggoth. Existiram ainda diversas outras actividades como concertos, uma conferência (à qual falhei) sobre o Neo-Paganismo (que me interessava sobejamente para este artigo), e um ilustre etc. Fica a vénia!

Enfim, espero que esta tradição seja ininterrupta e que continue a propiciar a tomada de pulso às sombras. Nós encontramo-nos para o mês que vem, como uma maldição certeira. Até desejaria Happy Halloween a todos mas prefiro calar-me à espera que os vendedores o façam e deixam para nós a rebelião mais profunda de os poder rejeitar e acender uma vela favo de mel, beber um bom vinho tinto, meter a Black Number One e sair ou ficar à caça dos espíritos e corpos disponíveis pela loucura especial dessa (passada) noite antes de nos entregarmos ao bem mais português Dia de Finados.
Espero ter acertado.

XII

O ilhéu


Desde a passada Segunda-Feira (uma qualquer, para o caso não interessa) que avanço e recuo em escrever este Spectator. Não sei bem porquê, o meu hábito em fazer estas retiradas normalmente aparece associado a outros escritos que não estes. Se me auto-analisar provavelmente chego a algumas conclusões que em nada nos irão salvar deste dilema. Bem, outro dia, para dizer a verdade, acordei com dose a mais de veneno no corpo. Instilado por quê ou por quem não vem ao caso (são sempre os mesmos, usam é gabardinas e chapéus diferentes) mas esse, bem me lembro, utilizei para fim mais benéfico. A teoria e prática dos anticorpos ainda me parece muito bem.

Voltando aqui pois é aqui que tenho de estar em momentos de agora e de futuros mais ou menos eternos, esta peça pecará (bem o antecipo, é um talento -dos poucos - que tenho) por ser muito genérica mas talvez caia bem para desenjoar o recorrente who is who, true or not true do Metal, que começa (tardiamente e se calhar já fora de prazo) a impôr-se nestas páginas da Loud que sei bem sinceras, através de buracos e inspectores que tem a graça que se lhes possa ou não atribuirs. Não entendam isto como uma farpa. Na minha seriedade só uso lanças, bem o sabem. Aliás se me lembrar para o mês que vêm vou mais longe: prometo oferecer (destituído, garanto ,do espírito daquele aniversário inflacionado que se comemora acumulando dívidas todos os Dezembros) uma história muito engraçada de solidariedade do Metal. Como as uniões, de vez em quando, alcançam objectivos. E as separações também , acreditem!

Ia eu fazer o meu texto mais genérico então. O facto é que me meti em azares. Depois de uma noite fundamental de registos e saltos na cadeira velha de realizador (velha, não antiga...) que aqui tenho agora no meu canto, fui me deitar. Para meu espanto a espertina deu-me para o zapping frenético até encalhar nos prémios europeus da MTV, apresentados em Barcelona, e por lá ficar ultrajado e prestes a demitir-me da Europa, da qual nunca gostei muito enquanto projecto.

O público, o lugar e o feeling eram meros acessórios e de Barcelona (que já tive o prazer de visitar a pé e de um palco) nada havia. Aquelas flores decorativas que se atreveram a comparar a Gaudi eram ridículas, vistas de qualquer ângulo. Até do mais simpático. Passei a correr pelo Pop; Dance; por essa visão irritante que é o Moby, ou o outro-como o negativo deste - que mudava de chapéus e falava um inglês que só ele entende; pelas cópias das cópias de cópias do Rock que ganhando a revelação me fizeram uma revelação ou me recordaram, provavelmente, de uma; enfim por tudo até chegar ao Melhor grupo hard rock, onde todo o pouco que já havia se desmoronou por completo. A ver: bandas europeias nenhuma nomeada, ignorando por completo fenómenos de venda e popularidade do Velho Ilhéu como HIM, Rammstein ou mesmo microclimas habitados por Cradle of Filth,etc.
Da categoria completamente preenchida pela (praga actual, já assumiu esses contornos, que me desculpem ou não os apreciadores dessa sonoridade) Nu Metal ganharam uns americanos (linkin´park, presumo) entre outros quatro nomeados do mesmo Continente (não sei se os Nickelback lá estavam). Aliás procurei esquecer mas foi-me impossível e porquê?

Porque me sinto envergonhado de nos virem dominar no nosso território. Nunca fui um Europeísta e sempre fui permeável à nova e fresca cultura Americana. Exemplos a confirmar em Burroughs, Bret Easton Ellis, Tool, NIN. Sempre me fez enorme confusão o fácil escapismo Europeu e o apontar dos EUA como o bode expiatório mais fácil para explicar as nossas fraquezas. Já visitei os EUA, por diversas vezes, senti o seu pulso da perspectiva do palco, da estrada, do diner, do motel 6, até de uma cadeira de dentista, entre outros folclores.

Ainda assim senti-me pela primeira vez invadido. No mau sentido. Não pela invasão em si mas pela sua facilidade, que vem de dentro das ameias destas ruínas. A Europa é o agente infiltrado da destruição de si mesma. E neste pormenor do rock (indissociável do Metal) vê-se muita coisa e prevê-se muito mais. Tanto que é a própria Europa que cospe para fora de si os seus talentos: meros casos de exotismo europeu (nostalgia, talvez) meritórios ou não, quando apreciados nos EUA. Comemos a sua comida, bebemos as suas bebidas, ouvimos a sua música, mesmo quando nos são prejudiciais.

Mas este tom manifesto anti-EUA não é o meu. Todos estes exemplos são irrisórios, mínimos até. O nosso underground tem um pulmão ainda fresco. A nossa literatura ainda é incomparável. Mas o que aqui quero que se sinta ou pelo menos o que senti foi de termos (ou de terem por nós) nos demitido de sermos um Continente. A imagem que tenho é de estarmos numa rocha pequena, muito apertados, sem espaço para irmos a lado algum, vivendo num espaço que se reduz e se desculpa com o facto de o reduzirem. Rodeado por coisas que até queremos, mas que não sabemos usar sem elas nos substituírem, vivendo num ilhéu a caminho de ilhota a caminho de uma pedra tão pequenina que não poderá, de algum modo, flutuar sozinha.

Claro que tal coisa (os MTV awards) não nos deveriam atingir. Claro que o mainstream não nos pode irritar. Claro que temos problemas muito nossos (o da tal verdade) que queremos perpetuar. Claro que nada disto tem o alcance que nós poderíamos temer. Mas para mim a desculpa da distância, da intangibilidade e da superioridade histórica já não pega. E todos os dias trabalho na minha salvação: a da nacionalidade própria – a da resistência. A de dormir e acordar com a nossa cultura, essa sim que me permite e convida a protestar.

Aceitei o convite,

XIII

Chihuahua 2002

A chuva que martela verdadeiramente os vidros duplos (que dizem vender-nos com as casas) deste meu canto, arrasta-me, com algum talento e força, para aquela dolente introspecção “inventária” que os finais de qualquer ano dão a qualquer ser que saiba ou não dosear as tristezas, os momentos distraídos de felicidades, enfim, todos os expedientes e esquemas de sobrevivência que usou para manter a cabeça à tona das águas e correntes desse ano. Essas mesmas águas que agora, ironicamente, caem do céu para lá voltarem talvez ainda este ano.

O melhor dos balanços de final de ano é não ter tido tempo de parar para pensar e quantificar as coisas e dar-lhes essa forma e medida. Imaginem que a vossa loja ou vida se manteve tão ocupada que não teve tempo de se inventariar ou de se contabilizar de alguma maneira, por muito que se goste destes truques finais e que tão convenientes nos são ao nosso ora miserável Optimismo ou por outra ao nosso sempre exercitado Pessimismo.

Quando se chega ao fim de algo, mesmo condenados a usar calendários que não nos servem ou sequer pertencem, ensinaram-nos a não resistir a ver os fins, como talvez os princípios dos princípios. Como tal, já o fim é, isoladamente, um problema de enrolar línguas e mentes. Se nos pusermos a inventariar poderemos até cortar o meio caminho da ponte e ficar agarrados a memórias ou ao esforço em as iluminar o que faz doer a cabeça da cabeça para dentro. Daí eu ficar excitado quando um ano acaba em confusão e promiscuidade entre passados, futuros e meros presentes, e de não puder (nem com o olho atento do Spectator) chamá-los pelos nomes devidos.

É curioso que assim de memória nem me lembro quanto tempo passei nestas páginas e muitas vezes o que fiz delas e como foram ou não recebidas. Ainda assim esta coluna encontra uma auto motivação inexplicável. O facto simples de escrever ser um acto de irreflectido prazer egoísta, o qual cada vez mais não se questiona.

Em conclusão o meu ano (sem balanço incluído) foi o não ter tempo para pensar seriamente nele o que como já constatei tal é menos doloroso. Por outro lado, o meu ano e a minha vida tiveram um momento que aqui queria destacar: a ida recente de Moonspell a Chihuahua (México) e tudo quanto se passou por lá.

Este foi a todos os títulos um concerto insólito a começar pela maneira como chegámos a um aeroporto lindíssimo, num vale, em que nos dirigíamos pelo nosso próprio pé através da pista e daquele ar maravilhoso de vale até à zona das bagagens. Continuando, através da recepção pelos nossos promotores que nos prometeram (sem sequer falarmos nisso) a trilogia do rock’n’roll para aquela noite, nem mais um segundo. De dentro da carrinha a estátua rebelde de Zapata, depois a de Pancho Villa, e antes, através dos vidros sem chuva, um anónimo lutando com uma árvore na berma da via rápida, confronto esse visível em poeira e loucura de uns bons metros de distância. De como as autoridades nos forçaram ao palco bem mais cedo do que o previsto (sem ensaio, sem nada) para prevenir o motim anunciado das mil e muitas almas que nos aguardavam, a nós de Portugal!, os objectos arremessados em pura celebração (as moedas de dez pesos doem na cabeça), os objectos voadores em forma de sapatos desportivos, latas de cerveja Modelo,etc. E eu ali no epicentro de tudo isto a pensar na minha vida enquanto saboreava aquela loucura familiar, aquele reconhecimento, tudo aquilo mas não deixando de imaginar a minha rua, a mercearia onde vou, os velhotes que cumprimento, os olhares que troco e os que devolvo.

À noite, no hotel: a trilogia faltou e falhou uma vez mais. Também não interessava. Eu estava no quarto a vomitar devido aos meus excessos de adrenalina em concertos, ao frio, a tudo, ao vazio de descer de um palco que se preenche de forma incrível quando se sobe a outro. Enfim a purificar-me, pois o vómito traz sempre consigo a esperança.

E mais uma vez a pensar na minha vida tão bem resumida nesse dia e noite que nunca esquecerei e que por causa disso serei sempre infectado com o desejo de repetição, ferida aberta que não sara nunca, ferida essencial.

2003 não será diferente. Assim o espero. Assim vos desejo.


Três notas de rodapé:

1- Se quando lerem isto já for 2003 não estranhem e leiam com o mesmo interesse. Os corpos dos mortos levam um pouco a arrefecer.
2- Não me esqueci do episódio solidário do Metal. Só não o quis escrever nesta altura pois todos devemos estar fartos da caridadezinha desta época.
3- Podem, de agora em diante, enviarem as vossas observações para o meu laboratório: Spectator@mail.pt

XIV

A língua afiada das Culturas


Sei bem que o Spectator tem virado, até por vezes demais para o meu carácter dado às fantasias de toda a espécie -mesmo às da espécie da realidade- o seu olhar atento para o que se passa neste místico rectângulo à beira-mar plantado e perdido. Pois que muitas coisas se passam nele agora e muitos Fins começados há tantos anos se dão agora a revelar e concluir, ou então, a passar a validade das coisas velhas que não eternas.

Esse olhar perdido dar-me-ia muito mais prazer e jeito se fosse um olhar interior, virado para os interiores dos temas e das coisas que os compõem. Assim como ver a árvore na sua beleza e não pensar nunca nos bichos que a roem, na água que lhe falta, nos homens que a ferem. A isto pode chamar-se, com alguma justiça, fuga. Mas tempos há em que não, ou raramente, se consegue escapar. Esses são tempos de contemplar com dor. Esses são tempos de desesperar. Esses são tempos em que não se consegue viajar para mais longe do que alcançamos com a vista. Esses são os nossos tempos.

E entre os milhares de assuntos que os nossos tempos trazem às costas, pela mão, ou no peito aberto existe hoje um, como poderia ser outro, que me impele a falar dele. Porque acho que nos diz a todos respeito, em particular no âmbito que nos traz aqui todos os meses, reunidos, a esta publicação.

Têm-se multiplicado nos últimos meses as actividades que se propõem a salvar a música portuguesa. Dentro dessa dinâmica existem, na minha humilde opinião, posições e actividades mais conseguidas que outras, melhor intencionadas que outras, mas, pelo menos, todas pertinentes na (tentativa) de resolução de um problema maior e já falado aqui, por diversas vezes: o de Portugal não dar valor ao que é seu.

Por isso, e como é público, desenvolvem-se projectos de lei ou de sua regulamentação; constroem-se manifestos; promovem-se debates, um deles de extrema importância e revelador como o da RTP 1 que reuniu, segundo a opinião dos seus promotores, quem estava preocupado com a situação da música nacional. Convite equivale a preocupação? Estranho.

Sendo notória a falta de união e sobretudo o desconhecimento ou a não-assunção de que interesses particulares podem, de facto, propiciar situações benéficas para um contexto mais alargado, também se notou uma grande lacuna nessa discussão: a ausência das bandas que cantam em inglês e que representam uma considerável, mesmo muito considerável, percentagem de música consumida ou absorvida (ambos os temos são horríveis) por camadas consideráveis de público.

No Heavy Metal isso é evidente e apesar do flirt mensageiro de introdução da língua portuguesa em temas diversos, a língua utilizada, por excelência, é o inglês. E é precisamente neste estilo de música que se encara com maior naturalidade essa opção. Pela tradição do estilo, por razões profundamente artísticas e expressivas e, essencialmente, por a língua inglesa permitir ao Heavy Metal um dos seus grandes dons: o da comunicabilidade entre os diversos povos geográficos e mentais que o escutam, com devoção e atenção.

Tal se torna ainda mais interessante quando se assiste ao fenómeno muito particular de bandas (muitas já) com maior ou menor fineza e qualidade, que utilizam mitos e fenómenos culturais portugueses e constroem a sua Arte ao redor destes. Coisa repetida por esse mundo fora com os excelentes exemplos de Amorphis (com o épico finlandês Kalevala), ou até o nosso com Opium ou Alma Mater.

Um seguidor português compreende o Kalevala e suas referências, assim como o finlandês se interessa pelo universo de Pessoa ou pela nacionalidade explícita de uma Alma Mater, que reflecte, sem discussões, o dilema de uma banda portuguesa só, evidente da condição do seu país.

O elo comum é que todas esta culturas são comunicadas pela língua inglesa que é apenas um meio para chegar a um fim, ao qual, nos melhores casos, se adiciona um domínio mental sobre uma língua estrangeira aprimorando e levando mais longe essa comunicação que se torna influência, cumprindo assim o seu destino.

A pergunta a fazer é então: será que a cultura de um país se resume à pureza intocável da sua língua? A cultura portuguesa resume-se à Lusofonia?

Quer me parecer que não. E de tal atestam Pessoa e Saramago e José Luis Peixoto, mestres do português, traduzidos em tantos idiomas (tendo Pessoa escrito inúmeros textos originalmente em Inglês). De tal constitui prova pessoas que ao lerem letras de Moonspell em inglês se viram impelidas a aprender português para se aperceberem melhor da profundidade do contexto (esse bem português) das mesmas. Enfim tudo para chegar ao conteúdo, definição bem maior de cultura, do que a mera preocupação com a sua forma.

O Heavy Metal na sua inteligência compreendeu isso bem cedo. Daí que essa discussão nunca tenha suscitado polémica ou nos tenha feito perder tempo algum. Resta olhar este exemplo e adicionar o que ele ensina a esta luta justa de recolocar a Arte musical portuguesa no seu devido lugar central e dominante.

Há que apenas também ser justo na definição do que se entende por português e nunca utilizar a Lusofonia como redutora de realidades que pulsam bem forte e levam bem longe o que Portugal tem para oferecer de melhor: a sua cultura, as suas encruzilhadas e todos os seus obreiros a quem nunca foi feita justiça suficiente.

XV

Are you Morbid?

Sempre pensei que para uma verdadeira biografia de algo ou alguém ter sentido existe uma condicionante bem forte: que esse algo ou alguém esteja morto. De modo a que as suas glórias ou tibiezas, não o incomodem por demais no seu descanso, ao contrário do que se passou na vida, que, a merecer ser escrita, terá, forçosamente, que significar que esses momentos de engano e dor ora o absorviam por completo, ora o lançavam à superfície com violenta intenção.

Sei bem que esta posição levanta problemas indefensáveis. Também vos confesso que não os conseguiria defender, mas para lançar mais fogo no fogo que me arde dentro da cabeça quando começo a preencher estes espaços que dantes eram vazios, a verdadeira biografia, aquela que interessa e conta a verdade deve ser feita por mão própria. O que, em célebres casos, impede a condição da verdade e legitimação biográfica da morte e que limita o género da biografia a um género sem fim, puramente documental.

Não quero dizer com isto que se demitam os biógrafos. Admiro a tenacidade dos autorizados e o destemido olhar dos clandestinos. Afinal biografar é prestar homenagem, ou deveria ser, quanto mais não seja falando do que não se sabe, ou do que se lhe foi revelado ou descoberto, mas sempre falando do que, em algum momento, foi essencial para um grupo de um ou, se tudo correr bem, para um grupo de muitos que se interessaram pelo percurso do tema que levou à sua empalação biográfica. Esclarecendo, penso que a perspectiva cutânea de toda a verdade e sentimento melhor convém ao punho pessoal e se me atrai a ideia do respeito em se ser biografado, não posso ocultar o desejo imenso que é contar a própria história pelas palavras que nos são próprias

Outro problema interessante é aquele das biografias que tem justificação pelo (mais ou menos) efectivo fim de algo ou alguém mas que não se conseguem limitar a ele, pelo carácter eterno do que está a ser biografado: tal é o caso da exemplar biografia dos Celtic Frost (uma absoluta referência), cunhado pelo punho talentoso e batalhador de Thomas Gabriel Fischer, outrora afamado Tom G.Warrior, afinal de contas o cérebro e sopro visível que animou, durante oito intensos anos, o percurso inimitável de uma das bandas que mudou o cenário da música pesada para sempre, e sobre a qual se assombra o parto complexo, a meio caminho da glória e da maldição, de toda a geração de gentes subterrâneas que tentou esticar a pele bem estreita do Heavy Metal tal como era conhecido até à descoberta da Geada Céltica.

Em boa hora li (agradeço o conselho do nosso ilustre director J.Rodrigues) e em que excelente contexto me encontrava para beber o sangue e alma com que estas páginas foram escritas.

O que torna este documento essencial como poucos outros é a facilidade com que ludibriou todos estes meus receios, filosóficos concedo, sobre biografias e biógrafos. Pois que raras vezes vi alguém contar uma história de realidade pura e dura com tanto misticismo; raras vezes vi alguém denunciar o eterno problema executivo da Arte e dos conflitos perpétuos entre criadores e gestores - que existem ao nível mais máximo e mais mínimo que se possa imaginar – com tanta elegância, enaltecendo o papel primordial do músico e de tudo a que este se propõe a passar pelo prazer simples e arrebatador de se representar influenciando; porque raras vezes me senti tão próximo de uma história que talvez tenha vindo a acabar mal como aconteceu com tantos outros génios que não soubemos ou quisemos acompanhar. Porque o final infeliz na história de um génio nunca passa de um pormenor, sendo este o caso, sem qualquer sombra de dúvida.

Mesmo para os ávidos de episódios esta biografia contabiliza, com eficácia e equilíbrio, esse folclore típico, adicionando-lhe uma dimensão humana exemplar. Se eu aqui fosse relatar alguns todo este artigo perderia a substância que se lhe quis dar. Porque descontextualizar e transplantar para aqui qualquer das suas linhas seria sempre trair o espírito e a letra de um livro e documento que por si só e em si só tem a força de uma lição de vida, a todos quanto, como eu, seguiram com devoção a carreira triunfal e arriscada dos suíços; ou todos aqueles cuja paixão são estes mares turbulentos; ou simplesmente todos aqueles cuja leitura de um livro pessoal e marcante os influenciará como poucos outros.

A mim resta-me esperar que, conforme já anunciado, esta “morte” seja sucedida de digna ressurreição. O Spectator lá estará na primeira fila quando retirarem a pedra deste túmulo.

XVI

Paper cuts/Cortes de papel

Confesso que por razões que não são totalmente alheias a todos aqueles que confluem na minha superpovoada área mental, vulgo alma (cuja definição e presença me encanta, cada vez mais), voltei dos gelos e do Inverno de oito meses Finlandês um homem mudado, e, por feliz consequência, um Spectator mudado.

Talvez tudo isto ainda sejam resíduos de experimentar uma realidade diferente, muitas vezes para melhor, ou marcas indeléveis de documentar em apertado tempo algo com que se viveu, em consciência, durante mais de dois anos, não contando com todo o período de indecifrável sonho e medo que nos faz chegar perto dessa lonjura, tão próxima à pele da nossa alma.

A consequência, sendo ou não notada, será notória no seu egoísmo e, esperançosamente, na sua gémea comunicação, nunca deixando, no entanto, de ser secundária em tudo quanto influir ou em tudo quanto fale de volta e se constituía enquanto influência. A parte visível será pouco mais que umas quantas promessas quebradas e frases quebradiças, mas, na ética possível do Spectator, o mínimo a fazer seria queimar umas linhas com um aviso genuíno e bem-intencionado.

Por essas terras do extremo Norte chegou-me às mãos (movido pelo novo ímpeto literário de um amigo bem próximo) uma biografia de Motley Crue, novíssima e que nunca vi à venda em Portugal (como se tal referência fosse necessária) chamado The Dirt e que, pelas citações habituais no seu exterior, prometia ser uma biografia reveladora, cruelmente detalhada e acidamente precisa na narrativa da história da banda que mais marcou o movimento Glam Rock nos anos 80, a nível mundial.

Apesar do livro pertencer ao inimitável Mike Storm, foi curiosa a sã disputa que o livro originava e, durante dias, nunca vi o livro parar para descansar em cima de uma mesa, esquecido numa cadeira ou despercebido num canto.

Ao meu primeiro contacto com aquela biografia em livro fui atacado sem piedade e, apesar de não ter passado de umas rápidas 60 páginas que li sem mastigar, por três vezes sangrei com cortes de papel, profundos à sua escala, e consegui mesmo assim, evitando a represália justíssima do dono da obra (afinal quem gosta de nódoas de sangue ou de outros alimentos nos seus livros? - eu até gosto, feitas por mim, como sinais de vida), deixar o livro imaculado, se este alguma vez o conseguisse ser.

Entretanto, enquanto escrevia mais este retalho, cheguei ao fim da história contada em Dirt, uma história que roça apenas o contacto com a música e visões provocadas, compensando, e de que maneira, em detalhes da vida pessoal dos quatros membros desta banda que, como curiosidade, começaram desde logo pelo fim de muitas outras bandas. Isto é antes de se conhecerem entre si e de se juntarem para fazer música, o sexo, as drogas e o rock and roll mais puro pela sua impureza, eram o seu quotidiano e a partir daí tudo foi permitido e o que não fosse permitir-se-ia com a dose certa de insistncia e loucura.

Aliás, este livro é um excelente documento sobre a fragilidade humana, de como ela se camufla entre viagens induzidas e voltas propositadas aos infernos artificiais, não se poupando palavras e estilos na narrativa de tais epopeias.

E se bem que o Spectator arrisque a se tornar uma mera coluna de sugestões literárias, ele reflecte apenas que quando a vida, como nós queremos, se encaminha numa direcção que não a nossa (mesmo que a desconheçamos) existem sempre as imitações da vida comprimidas em letras e em coisas que façam sentido e código. Afinal talvez só aquilo que lemos seja real, que os barulhos dos móveis que estalam à noite nas nossas casas sejam apenas produtos da nossa imaginação ou de ciências do calor. Talvez assim seja mais fácil alinharmos e pensar, só, naquilo que realmente interessa: o rasto que se deixa.

Back for good,

XVII

Santa, santa Raiva.


Será que alguém ainda se lembra daquela colecção de livros fantásticos, que se jogavam com dados, e que com dados se derrotavam monstros ou se acumulavam tesouros e poções, e que tinham fins alternativos, entre a morte certa e ficar com tudo (até com a vida), já para não falar nos seus nomes fantásticos que tinham sempre palavras como Profundezas, Masmorras, Encantadas, no título?

Parece-me que ainda tenho aí alguns, jogados ou por jogar, cheios (ou vazios!) de apagadelas de borracha, ou rabiscos de lápis nº2 (claro!), que testemunhavam as minhas tentativas de chegar ao fim, por cima de todas as mortes e, de vez em quando, até com segunda chances, auto-proclamadas, um pouquinho de batota mas a glória no fim.

Pois é bom que se lembrem, muito bom para mim mesmo, pois eles me servem hoje de sustento para falar daquilo que toda a gente fala, e que não podia deixar de ser falado: a Santa Raiva dos Metallica, tão antecipada e tão fresca e fervente nas nossas mãos, neste dia que é hoje.

Nada sabendo sobre isso, apenas o muito pouco que aprendi, penso que os Metallica (chamemos-lhe assim, apesar de nem todos terem sempre jogado ao mesmo tempo) eram como que o jogador desse livro e nós tudo o resto: os monstros, as poções, as vidas extra, as sortes e os caminhos errados.

Os Metallica, a certa altura, começaram a jogar muito a sério e não emprestavam o livro a ninguém, nem a nós que começámos a prestar atenção, desde muito cedo, ao decorrer do jogo. Os Metallica, às tantas, não nos passavam o livro para as mãos e nem sequer nos deixavam espreitar e nós ficámos raivosos com isso e tentámos virar costas primeiro, rir dos progressos e das quedas que, como a toda a gente que jogou ao livro, aconteciam. Víamos as partes de um todo que não entendíamos e às vezes gostávamos e outras não. Mas nunca deixámos de prestar atenção ao jogo e, principalmente, a como ele era jogado.

Hoje, uns mais maduros, outros a entrar e outros a apodrecer, vemos aonde o jogo chegou e sabemos que ele não irá ter fim ou sabemos ainda mais: que ele não terá aquele fim, como se fossemos nós a jogá-lo.

Se não fossem os Metallica o jogo teria ficado a metade. Isso seria bom? Se não fossem os Metallica não haveria tanta gente a ver e a aprender como se joga ou lê. Isso seria justo? Se não fossem os Metallica ainda hoje o jogo era assim como que para o clandestino. E era esse o plano?

Eles cá estão outra vez, como uma raiva que aperta, crua, o pescoço, por dentro e por fora. Eles cá estão, à frente de nós todos que os observamos, imitamos e comentamos, a provar que afinal para jogar basta ter sempre em mente uma coisa bem simples: gostar do jogo, saber ganhar e saber perder. Porque este jogo começa a todo o momento. E porque mesmo sem o saber e sem o querer, todos os jogamos a gosto ou a contra gosto.

XVIII


“Caro Spectator:

Ainda bem que olhou para baixo, para a fresta da sua porta. Alguma coisa bloqueava a luz vinda do anonimato do seu prédio. Também lhe deve ter parecido que ouviu algum barulho. Tudo isso está certo. A minha carta fina era o suficiente para bloquear essa luz meio morta, a minha mão rápida o suficiente para fugir do ruído que provocou, sem querer.

Não me procure, sou apenas uma mão que entregou e fugiu. Não tente reconstituir o meu percurso. Sabe tão bem como eu que os maiores inimigos de nós mesmos somos nós mesmos e é por saber isso que me atrevi a ir até onde ninguém sabe que você se esconde. Não me tente perseguir, nunca chegará ao homem que termina nesta mão.

É de noite, tal como ontem. Estou deitado na parte de trás de um carro, amordaçado e de mãos atadas, à espera que o tempo passe. A minha mordaça invisível é o não saber o que fazer. Mas olho pela janela para uma Lua grande e brilhante na sua metade. As nuvens do céu negro estão baixas, próximas e parece que seguram a Lua como uma coroa de um abismo. Correm uns poucos mais de quilómetros e as coisas mudam, a mesma Lua é a Coroa, mas o abismo espalha-se com o vento, multiplica-se em bastardos. Não consigo deixar de olhar.

Nos meus ouvidos a música alta do rádio, cá atrás quase a distorcer. Quando tiro os olhos da Lua e do céu negro espalhado, vejo as silhuetas das costas de dois amigos a conversarem e a saberem que estou ali, embora em nada, isso afecte a forma como as coisas irão correr. Aos meus ouvidos chegam palavras sentidas entrecortadas com o gutural grande de ritmos de guitarra e bateria distante. A voz impressiona, é diferente de todas quantas já ouvi. É de um rouco alto, parece-me que muitas vozes numa só, e quando clama por algo, quase que salto para a auto estrada, que passa a 150 km por hora debaixo de mim, para procurar tudo o que ele pede e saciar a sua sede.

No refrão a voz diz “Cause I want you´re giving”. Começo a reconstruir o caminho da voz até ao homem da qual ela sai. Ele está preso por fitas fortes a um helicóptero que roda, sem parar, como que descontrolado, entre montanhas altas e cobertas de branco. O homem que se define como escuro, negro, sem lei, inclina o seu cabelo selvagem para trás, e grita os seus pedidos, diz-se disponível, braços abertos, rodopiando, com o corpo em contracção, braços caídos, pernas pendentes, ao ritmo frenético das pás do helicóptero.

Pensa numa mulher, alta, implacável, selvagem que desce uma rua longínqua, numa cidade que só deveria existir em filmes. É ela que causa o remoinho, para ela são as preces e ela existe muito para além da voz e do gutural distante e grande que sai das colunas berrantes do carro.

Olho outra vez para a lua. Estamos a chegar. E redescubro, sem teorias, nem discussões, porque ouço estes sons, porque os vejo dentro da minha cabeça, porque não o vêm outros assim. E tranquilizo-me, porque recebi a beleza no seu estado mais puro: o misturado.

Seu,

Eu.”

XIX

Terrores de Verão.


Não sei se por regressar de um período que muitos encararam com a normalidade deste horrível e caloroso Verão incendiário, para mim passado muito mais a falar e a beber com estranhos, mas apetece-me o Outono. O frio subtil que já se infiltra na nossa pele, um cobertor na cama, mais um casaco fora do armário, a sensação do conforto de voltar para uma casa quente, um chá, um banho que ferva e nos estique a pele arrepiada. Digo-vos mais, os meus sentimentos e a guarda avançada da minha cabeça, já está em plena meia-estação, a recuperar das levezas do Verão, em que nem se ouve música, nem se lê com atenção, enfim de um bom par de meses, cada vez mais longo, em que nos procuramos entreter o mais que possamos, mas que, quando agora revemos a nossa rentrée, nos parece nada mais que o todo o gelo que depressa derretia dentro das nossas bebidas, vazio, misturado, rápido e que nada nos deixou de especial. Enfim, o Verão é o engano. Engano dos corpos com outros corpos que já não nos dizem nada, engano das mentes com o nada que havia para dizer ou escrever, engano das sensibilidades em festivais cada vez mais quentes, por não sabermos porque vamos ou ao que vamos. Simplesmente, vamos e o calor é isso, é ir sem o saber.

Felizmente, existem transições e retomamos controlo das nossas vidas e pensamentos ao menor sinal da purificadora corrente de ar gélido e dos casacos fora do armário. E neste regresso o que há a apontar, para além da confusão que já é regressar? Para mim dois sentimentos muito óbvios e que me fazem lembrar sempre esta altura: o amor e o medo. Explico:

Não sei se tenho passado muito tempo com escritores ou entre livros, e o facto de ter andado todo o Verão a falar de Arte e seu enquadramento (as tais conversas com estranhos e bebidas com os mesmos, leia-se tour de entrevistas com os diurnos Moonspell), só me faz ocorrer estas duas coisas, que tanto têm de isso mesmo, de coisas e, como tal, de desafios a compreender. E amor e medo foi o que senti agora que recebi, finalmente, o produto final do The Antidote, o nosso novo disco. Produto final é/são a/as palavra/s feia/s para definir o álbum completo e pronto a comunicar na sua plenitude. Longe de o querer publicitar aqui, porque compreendo que tanto compra quem quer, como quem pode, e não me compete a mim, na pele de Spectator sugerir algo nessa decisão, tomo-o como um exemplo de amor e medo. Amor porque o arrepio que se sente e o olhar aguado é a alquimia do espírito a funcionar no corpo, medo porque lançar o que nos correu nas veias, nas correntes mesmerizantes do sangue para o e os desconhecidos também faz apertar o centro da alma.

Até pensei em perguntar ao miúdo que viajava ao meu lado no avião o que achava de tudo isto, do amor e do medo, e de como objectos que contém pessoas que já foram objectos dentro dessas pessoas nos provocam tais frios e colapsos. Ainda o vejo de olhos fechados a responder, ao bom estilo Damien, que amor e medo são a violência do corpo, no sexo de corpos a baterem, na música veloz que ele sabia que eu ouvia e que lhe lembrava punções sexuais, mas que amor e medo também eram aqueles que respiravam, frio e pesado, atrás do nosso pescoço, aqueles que nos sussurram baixo e que estão levantados assim que nós nos deitamos e deixam essa vida de morte acontecer.
Pois aqui estou de volta, com os meus medos e amores, frios e coisas fora do armário. Tinha saudades da desolação que faz aqui dentro, do gelo que nos conserva, criogenicamente, até à eternidade. E para o mês que vem vou-vos contar uma coisa bem diferente, cheia de veneninhos que andei por aí a recolher com uns amigos. Vão para dentro, faz frio!

XX

Encontro de irmãos:

Numa das minhas raras saídas do meu laboratório/observatório/lugar algum, convidei o Inspektor 666 e o Buraco para uma noite de metálicas cervejas e conversas, e, com agrado meu, eles aceitaram e lá fomos perdermo-nos numa cidade qualquer, num bar qualquer que admitisse a entrada de um homem alto de chapéu e óculos de sol um pouco em desuso, de um senhor de bigode e olhos a deitarem raios vermelhos e de um outro, bem, de descrição mais complexa devido à simplicidade anal da sua figura.

Entrámos e, para nosso espanto, fomos reconhecidos pelo dono e indicaram-nos a mesa do canto, onde podíamos falar à vontade, embora, estando o bar vazio, começámos logo a desconfiar de todo este zelo mas mantivTerrores de Verão.


Não sei se por regressar de um período que muitos encararam com a normalidade deste horrível e caloroso Verão incendiário, para mim passado muito mais a falar e a beber com estranhos, mas apetece-me o Outono. O frio subtil que já se infiltra na nossa pele, um cobertor na cama, mais um casaco fora do armário, a sensação do conforto de voltar para uma casa quente, um chá, um banho que ferva e nos estique a pele arrepiada. Digo-vos mais, os meus sentimentos e a guarda avançada da minha cabeça, já está em plena meia-estação, a recuperar das levezas do Verão, em que nem se ouve música, nem se lê com atenção, enfim de um bom par de meses, cada vez mais longo, em que nos procuramos entreter o mais que possamos, mas que, quando agora revemos a nossa rentrée, nos parece nada mais que o todo o gelo que depressa derretia dentro das nossas bebidas, vazio, misturado, rápido e que nada nos deixou de especial. Enfim, o Verão é o engano. Engano dos corpos com outros corpos que já não nos dizem nada, engano das mentes com o nada que havia para dizer ou escrever, engano das sensibilidades em festivais cada vez mais quentes, por não sabermos porque vamos ou ao que vamos. Simplesmente, vamos e o calor é isso, é ir sem o saber.

Felizmente, existem transições e retomamos controlo das nossas vidas e pensamentos ao menor sinal da purificadora corrente de ar gélido e dos casacos fora do armário. E neste regresso o que há a apontar, para além da confusão que já é regressar? Para mim dois sentimentos muito óbvios e que me fazem lembrar sempre esta altura: o amor e o medo. Explico:

Não sei se tenho passado muito tempo com escritores ou entre livros, e o facto de ter andado todo o Verão a falar de Arte e seu enquadramento (as tais conversas com estranhos e bebidas com os mesmos, leia-se tour de entrevistas com os diurnos Moonspell), só me faz ocorrer estas duas coisas, que tanto têm de isso mesmo, de coisas e, como tal, de desafios a compreender. E amor e medo foi o que senti agora que recebi, finalmente, o produto final do The Antidote, o nosso novo disco. Produto final é/são a/as palavra/s feia/s para definir o álbum completo e pronto a comunicar na sua plenitude. Longe de o querer publicitar aqui, porque compreendo que tanto compra quem quer, como quem pode, e não me compete a mim, na pele de Spectator sugerir algo nessa decisão, tomo-o como um exemplo de amor e medo. Amor porque o arrepio que se sente e o olhar aguado é a alquimia do espírito a funcionar no corpo, medo porque lançar o que nos correu nas veias, nas correntes mesmerizantes do sangue para o e os desconhecidos também faz apertar o centro da alma.

Até pensei em perguntar ao miúdo que viajava ao meu lado no avião o que achava de tudo isto, do amor e do medo, e de como objectos que contém pessoas que já foram objectos dentro dessas pessoas nos provocam tais frios e colapsos. Ainda o vejo de olhos fechados a responder, ao bom estilo Damien, que amor e medo são a violência do corpo, no sexo de corpos a baterem, na música veloz que ele sabia que eu ouvia e que lhe lembrava punções sexuais, mas que amor e medo também eram aqueles que respiravam, frio e pesado, atrás do nosso pescoço, aqueles que nos sussurram baixo e que estão levantados assim que nós nos deitamos e deixam essa vida de morte acontecer.
Pois aqui estou de volta, com os meus medos e amores, frios e coisas fora do armário. Tinha saudades da desolação que faz aqui dentro, do gelo que nos conserva, criogenicamente, até à eternidade. E para o mês que vem vou-vos contar uma coisa bem diferente, cheia de veneninhos que andei por aí a recolher com uns amigos. Vão para dentro, faz frio!

XXI

Intuição

Por aqui. Permitam-me só um momento para me seguir a mim próprio. Sempre quero ver onde este pensamento vai, se vai atrás do outro que mesmo agora tive ou se este é um daqueles petulantes/corajosos e segue já pelo seu pé. Estou de volta e, genuinamente, não espero um comité de boas vindas, nem flores, nem sequer o assombro de um sorriso daqueles dados de lado. Juro pela minha lusitana honra. Tão verdade como não haver qualquer espécie de ironia camuflada nestas palavras. Gostava que nestas ficções mais ou menos ensaiadas hoje houvesse mais franqueza. E cada vez mais penso que a verdade, longe dos factos ou da disputa destes, é uma intuição.

Para os que me conhecem melhor sabem que andei, durante longo tempo, por fora. Também saberão que esse privilégio/maldição não é impeditivo suficiente para me fazer parar de honrar esta coluna todos os meses. Afinal, já não vivemos na idade média das comunicações que foram os Anos Oitenta, e, entre nós, grande parte dos Noventa. Sei melhor que ninguém que esta coluna não poderia, nem deveria ser uma exposição dos meus dilemas pessoais (há de haver quem discorde) e que aqui teorias, histórias, episódios, críticas seriam, numa óptica perfeita, o substrato e a razão de existir da tomada deste espaço todos os meses, ou pelo menos nos que consigo cumprir com o prazer desta obrigação.

O que me fez estar longe, sem mais delongas, foi que achei que nada mais tinha a dizer, luto porque me perdi nas palavras e nos sentidos que descolam delas. Explico: sempre(por vezes de misteriosas maneiras) tentei relacionar de algum modo as minhas deambulações com o Metal, muitas vezes o nacional, por muito custoso que isso fosse para todos. Não nos podemos esquecer de que a Loud!, embora eclética, é uma revista de moldes bem definidos (o que se agradece). Pois bem e apesar de não negar ou achar como desperdício qualquer gota de tinta ou atenção provocada, esse sentido escapou-me e fiquei preso num dilema que só hoje, enquanto escrevo, desanuvia empurrado não por um vento daqueles das letras de Bathory mas por algo mais subtil, como que uma brisa que persiste até as nuvens abrirem.

Porque vivendo o Heavy Metal todos os dias no palco, na estrada, nas lavandarias, nas lojas de disco, na Turquia, no Kansas, em Paris, em Montreal e na Covilhã, nos bem passados cinco últimos meses, percebi que esta música e esta vida é toda uma questão de intuição. Nada mais. E sobre isso tem que se aprender a escrever de novo. Ou não. A ver vamos. E para quem nada tinha a dizer chegar ao fundo da página e poder deixar a tabuinha/jangada e o mar para comer alguns frutos exóticos em terra firme é uma verdadeira bênção (?).

Aliás, só por intuição, poderia eu ter sido escolhido para ser o melhor músico de 2003
nesta revista (e, realmente, curvo-me perante tal honra). É que o elogio é maior pois é feito puramente à intuição, acreditem. E é esta intuição que pressente que me faz ter um sorriso maligno nos lábios quando sinto (notem que evitem a palavra certa do pensar) o novo disco dos The Temple prestes a arrebatar-nos a todos; a ressurreição dos novos e sempre vivos Thragedium; a mística guerreira dos Ironsword a espreitar-nos pela viseira do elmo; privilégios que só se conseguem porque mais que racionalizar e dramatizar passei a viver de e para a intuição. Espero só agora que a consiga prender na força fraca ou fraca força das palavras do vosso: Spectator.

XXII

A raiz

Por muito que esperneiem é me difícil cair da montada veloz ou lazarenta, depende da estrutura dos dias, e mesmo quando os moinhos são feitos de vento, é esse mesmo ventos que impele as pás que fazem (este ainda irredutível) o pão das nossas mesas. Ah! E o Sol nasce para todos. Numa esplanada de quintal próprio ou na sombra de um prédio feio que o tapa. Feitos os aforismos, raiz é a tradução certa do nome de uma das minhas bandas preferidas (Root) e para muitos um enigma em forma de veio de ouro para descobrir.

Conheci Root nos tempos áureos em que um mero pacote de papel pardo contendo cassetes me elevava ao que penso ser a felicidade e me fazia faltar às aulas todo o dia, intrigando os meus colegas e deprimindo as minhas namoradas de então. Um amigo imaginário, real apenas nas palavras, de seu nome Jakub, fanático do Sparta de Praga e de Heavy Metal encheu uma fita magnética com bandas do seu país. Na volta do correio, com um esforço hercúleo, recebeu as demos de Thormenthor, as velhinhas gravações de Braindead e o épico inesquecível dos The Coven, tudo cronometrado ao segundo da qualidade e originalidade da sempre exótica (para os outros) cena Metal Portuguesa.Nessa cassete checa o meu Graal do Underground: o 7” de Root (que ainda falta na minha exemplar colecção) e a minha vontade de saber e ter mais.

1996, Brno, Rep.Checa, bem junto à Eslováquia. Muitos anos depois de versões falhadas e inspirações conseguidas, entra pela fábrica antiga de submarinos, uma figura baixa, de barba, cinquentas, de camisa digna dos 80 e sorriso afável. Big Boss, a voz e o espírito que navega a raiz, ladeado pelos meus conhecidos Pedro e Ricardo, acabadinhos de tomar banho na sua casa (os chuveiros da fábrica em mar seco tal como os submarinos que haviam produzido) no bom espírito subterrâneo que é bem mais do que vestir t-shirts com logos espinhados e calçar anéis grossos. Como no filme do filme do Kusturica: o começo de uma bela amizade.

Dois anos depois. Numa sala antigamente utilizada pelo Partido para inutilidades políticas, the second coming. Moonspell a fechar a noite e uma cerveja no bar entre amigos. Big Boss puxa um cigarro e isqueiros rápidos de acólitos lançam-lhe o fogo do prazer do fumo. Uma cena de filme, lá está.
Muito se diz desta personagem: que é o líder local da C.O.S. e que traduziu a sua bíblia para checo; que esteve preso por necrofilia; que os Root ensaiam nus para se conhecerem melhor; o que é facto é que nunca falámos disto e nem sequer me interessa. Os boateiros para mim são afundados aos quais devemos pisar a cabeça quando passamos por eles na rapidez de um olhar. O que me interessa é a indefinição e a dificuldade imensa de traduzir nas minhas amigas palavras o que esta banda significa para mim e para nós. O porque de um mero autocolante numa case minha provocar o olhar arregalado do Sharlee d’Angelo dos Arch Enemy/M. Fate. O porque do meu peito a explodir de orgulho quando ouvi a minha voz na canção Salamandra do disco Black Seal.

No último e grande concerto na Rep.Checa dediquei uma canção à melhor banda do mundo, teria sido melhor dizer submundo se se quisesse poesia em vez de entusiasmo, e ao lado do palco o genial Big Boss, que momentos antes cantava no camarim canções em Grego para nós todos, o guitarrista Blackie uma estrela desconhecida do Underground sorriam um merecido sorriso.
É que parece que a cortina de ferro ainda existe e que os Root em vez de dominarem o submundo e chegarem até quem os quer ver são apenas (o que é mais do que muitos) um luxo desconhecido do Underground, uma força telúrica que germinou valores e valores e que, graças às forças dos que caíram por sua vontade, continuam a dar-me a mim e aos escolhidos da raiz (escolhidos porque descobriram e seguiram a luz) novos discos, visões e personalidade, muita personalidade o que é raro hoje, raro como as histórias de luminosidade franca e aberta num submundo que outrora foi nosso mas que hoje pertence a brincalhões sentados em bares a lançarem bocas de cerveja em plástico à obra de outros enquanto que a sua apodrece na sua cabeça e na cabeça de amigos que a perderam.

Sei que o artigo não faz justiça a Root, nem o pretende, só a música no ouvido e na alma é capaz de alguma justiça, e não pretende designar nenhum mal. Tomem-no como um reconhecimento agradecido de um fã que ainda respira esses dias nos dias que vive hoje.

Última nota de luz: discos de metal para requisição na Biblioteca Municipal de Beja e exemplares da Loud e outras publicações de Metal para requisitar e ler (serão assinantes?). Tive o prazer de lá estar e ser recebido com radiância e de ser espectador desta manifestação de respeito ao nosso estilo de vida e à sua banda sonora. Até mais breves luzes.

XXIII

Helljoy

Se de nada mais servir pelo menos o título do artigo concerteza dará a muito boa gente um nick porreiro, quente, esperto e apropriado para esconder, mais ou menos, as nossas convicções nos fóruns e canais de conversa (a)fiada que são o quotidiano saudável e enfermo de tantos cansados das horas de trabalho ou de ócio. Este título, no entanto, é um dos temas do novo álbum de Unleashed (Swedish Death Metal mas daquele que eu gosto) que se bem que por vezes não irá parecer, é o assunto que me traz de volta ao vosso convívio depois do Verão mergulhado de sempre.

Toda a gente já sabe em plena consciência que a teoria das coisas virem em ciclos é realmente boa e tem uma capacidade de prova que convence os mais pragmáticos. As palavras são cíclicas, os assuntos e argumentos idem, nós próprios voltamos aos mesmos sítios em nós e o eterno retorno imita a vida que a Arte imita. Daí e na tentativa spectatoriana de metalizar assuntos, o Metal também navega essas ondas e se hoje a crista espuma demais com “metal” queixinhas de o meu pai tratava-me mal e não me comprou a BMX americana igual à do vizinho que deitava explosivos; ou “metal” (vivam as aspas!) vozinha sou tão famosa, livra-me Deus, por favor, de todo este dinheiro e maçada senão afogo-me na banheira do hotel; amanhã espumará com outras coisas e cabe-nos a nós e a mim que verdadeiramente estou entalado entre os dois lados, agarrar a periferia do círculo com as unhas da luta ou esperar sentado num monte de passado, presente e futuro que as águas me agradem. Todos nós passamos por isso e se por cada vez que as palavras vos batam e caíam incompreendidas no chão, espero que os sentimentos ora passados tenham caminho mais aberto. Afinal é Setembro que se torna em Outubro e não há assunto tão bom como falar de regresso.

E é de regresso que se fala, dos tais Unleashed que por pouco caiam do círculo deste artigo para não mais voltar. Das mãos habilidosas de um amigo e das redes da infernet que me custam os olhos da alma todos os dias chegou-me o disco ainda nem lançado na altura dos Unleashed e que comecei a ouvir enquanto a boca caía de espanto ao mesmo ritmo que os olhos subiam de prazer e as orelhas já eram torres lupinas a caçarem notas e ritmos e sensações e espíritos. Pois é e atenção que eu não escrevo críticas!!!, este Sworn Allegiance é o disco que, para mim, salva o Death Metal e onde se começa a desenhar o círculo outra vez. Só os bons saberiam pôr nas palavras os desígnios deste disco e eu não estou habituado a isso mas depois das teceduras louváveis dos Nile,do sempre musculado oculto dos Morbid Angel, do regresso aplaudido com as mãos em sangue dos Suffocation ou até daquela descarga dos Malevolent Creation no Ermal, cumpriram sempre (entre até boas novas tentativas ou a apropriação por vezes atroz do Death pelo Nu-queixinhas) a missão de estarem agarrados ao ciclo. Mas quando ouvi este novo disco penso e afirmo que nenhuma banda conseguiria, lá está, recriar o passado pelo novo como os Unleashed fizeram, sem discursos, sem tensões, sem polémica, pela calada e pela geada da noite com música de muito e muito poder da música! Agora soube que o David Vincent voltou a Morbid Angel e tudo isto me cheira a conspiração e me delicia as narinas fumegantes, conspiração do círculo do Metal mais genuíno dentro do Metal. Cá estarei. Aprendendo e apreendendo.

Claro que urge regressar e ouvir e estar atento ao movimento das marés como penso que quem ainda lê e compra esta sobrevivente revista está e ouçam, ouçam muito Unleashed e sonhem com o regresso do Vincent aos Morbid Angel e façam outros discos ganhar pó agora que bem o merecem. Isso é que interessa e se ainda aqui estão a ler e a perder o movimento do ciclo à vossa volta fazem mal, já deviam estar a comprar Unleashed e a ouvirem bem alto nas boas lojas porque as más não o terão ofuscadas por números e lógicas que tem menos interesse absoluto que aquele growl gargantual que é o chamamento: fuckin’ helljoy!!!

Voltamos para o mês para mais crónica de falsos costumes, palavras complicadas e sentimentos simples. O Spectator é um artigo de opinião e as convicções aqui expressas representam na verdade as convicções momentâneas ou eternas do seu autor.

XXIV

Stormbringer

São quase sete horas da tarde. Os transportes correm na direcção de casa. Um dia de trabalho passou e todos começamos a ser mais nós próprios, livres das obrigações e prontos, desde sempre, para a dedicação ao que gostamos de fazer. Subo as escadas, passando a mão leve pelo corrimão. O jantar ferve devagar ao lume ou aguarda ansioso no conforto selado do micro-ondas. O meu corpo chega agora onde a minha cabeça já estava desde manhã, quando deixei o computador ligado a fazer o download da demo de My Dying Bride, esgotada há que tempos na fita de crómio, mais cara na altura, mas que acabou por desaparecer engolida pelas ondas do tempo e da estática. Na sala, o ecrã sai da sua hibernação azul, digito a minha persona: Dawnfall, em baixo enchem-se as barrinhas de verde ou outras cores enquanto me sento a contemplar e a organizar na lista de itens todo o meu passado importante, algum presente em discussão e o futuro que pertence, bem...ao futuro.

Esta é a realidade de muitas e de cada vez mais pessoas que fazem parte de núcleos tão diversos como, por exemplo, do Stormbringer (SB), que as pessoas do Metal em Portugal, não podem negar enquanto fenómeno que nos merece uma consideração atenta e positiva. Para os leigos, como eu, o SB é uma espécie de “servidor” que começou na primeira pessoa cujo nick identifica o núcleo. Dedica-se à partilha de ficheiros com um número selecto de pessoas que têm características específicas em termos de gosto e conhecimento do Metal, não olvidando o aspecto essencial de ter, na sua posse, um número considerável e interessante de ficheiros para partilhar. Existe ainda a possibilidade de conversar e discutir os novos e velhos assuntos de bandas e discos, paixão só mesmo ultrapassada na comunidade virtual pelo prazer da posse de este ou daquele registo de determinada banda. Esta conversação e toda a operação de trocas e admissões é controlada, como em qualquer outro canal, por operadores e pelo criador Stormbringer himself, que faz não raras aparições apaziguadoras dos ânimos sempre exaltados entre os conservadores e os adeptos de teoria da evolução.

Claro que enquanto músico posso e devo notificar aqui o efeito perverso, não exclusivo ao SB, mas a todas as partilhas online que ignoram o pagamento devido dos direitos de autor às bandas e que poderão, a longo prazo, fazer com que essas bandas se tornem apenas memórias, castradas na sua imposição na cena pela necessidade cruel de se vender discos, mas hoje prefiro avaliar dos aspectos bem interessantes e muito positivos deste “tempestuoso” servidor, porque estes são dignos de uma nota aprofundada:

- Da primeira vez que tomei conhecimento do SB simpatizei, e muito, com a ideia de que este evoluiu para uma espécie de Torre do Tombo do Metal nacional, digitalizando e partilhando demos em cassete e álbuns que simplesmente saíram de circulação e que agora, sem saudosismos, fazem parte da nossa vida outra vez, a sua importância reconhecida postumamente, como acontece aos grandes. E ter num CD que não se vai perder ou consumir pela térmita da estática, demos como as de Braindead, Thormenthor, The Coven, só para citar excelentes exemplos, bem como V12 ao vivo no RRV ou o próprio e desaparecido em combate disco dos V12 ou Ibéria, é uma riqueza que não se pode ignorar. Daí que a capacidade de arquivo e o esforço desenvolvido por alguns membros do SB seja muito louvável e tenha um alcance notável para as gerações que continuam a passar e inverteram o efeito perverso da partilha em nome da segurança das nossas memórias ( e não vejo conceito mais importante no Metal que a memória).
- Este arquivo também permite, em tempo real, embora um pouco tardio, dar a conhecer lá fora o que se produziu, desde sempre, em Portugal(que como se sabe é uma cena por demais desconhecida), porque os seus utilizadores também frequentam servidores estrangeiros fazendo com que a cena lusa toda ela agorade cara renovada, esteja a postos a ser conhecida em poucos minutos por quem se interessar por ela. E nós por cá em formato digital, em carros, CD´s e noites SB (às Quintas, penso eu no Disorder ao Cais do Sodré) a desfrutar de Unleashed e Anathema vintage com aquele calor do ruído que agora sabemos nosso para todo o sempre.

Em conclusão, está chegado o novo Underground que espero que aprenda com o espírito do antigo e que use, em seu favor, esse mesmo espírito e dedicação para segurar uma tradição que sabemos essencial para muito do Metal que se aprecia hoje em dia. E, em vez de demos em formol e caixas e sacos cá em casa, posso ter tudo arrumadinho numa estante bonita, sem lhes mexer, enquanto que pela maravilha perversa dos tempos as vou ouvindo na garantia digital dos meus aparelhos.

Foi comovente ver circular outra vez as listas com todos aqueles nomes e especificidades e agora só falta mesmo arranjar um substituto para golpear a companhia de telefones ou de cabo, no sabor de cola da rebelião antiga do return my stamps!, talvez um return my bytes! possa passar a ser uma expressão de absurdo contentamento.

Um obrigado especial ao Without God por toda a informação e música!

Até à próxima deambulação:

XV

Unsilent night


É uma sensação estranha quando calhamos a encontrar amigos na esquina das palavras e vemos que falamos do mesmo, e que isso, com tantos caminhos que há a percorrer, se repete, aqui ou ali, restando-nos o ridículo do rebuscado e do inventar na cabeça até perdermos o oxigénio e desmaiarmos num artigo que não foi a lado algum. Já me aconteceu aqui algumas vezes mas para mim cair é um princípio do levantar e o desmaio uma outra forma de consciência.

E entre debates sobre o Metal e conversas que chegam ou não chegam para chegar a algum lado tive outra noite oportunidade de tomar o pulso à cena nacional, no Festirock do Montijo, onde estive a trabalhar no prazer supremo de tocar ao vivo com Moonspell. Mas, não se apoquentem, não é de mim que vou falar embora não tenha razões para não o fazer. Tantas vezes chegam ao meu ouvido sopros de brutais atrasos e bandas a tocarem a meia dúzia de minutos que restam ao seu set de uma hora que confesso que me assustei quando reparei que já havia público para o soundcheck dos Temple e que lhes respondia a preceito e comecei logo nas minhas diligências subtis para ver se se excomungava o fantasma dos minutos bem a mais. Para meu gáudio um bocadinho espantado os Shadowsphere entram em palco apenas 30 minutos após a hora que prometia arrastar-se bem mais. Primeiras simbioses felizes da noite. A nossa experiência de diálogo e uma excelente apetência para aprendermos uns com os outros estreava a noite com um concerto muito a sério dos Shadow..., a cativarem públicos num destilar de riffs “como se fazem lá fora” (ironia) e uma postura muito conseguida a encontrar eco num bom e já vasto público, que num misto de orgulho vizinho e participação merecida se despediu deles com braços no ar e lábios que moviam sómaisuma, vezes o suficiente para um sorriso aberto dos músicos que desciam dum palco finalmente à dimensão da dignidade de todos.

Os Temple são o segredo mais mal guardado da cena Portuguesa e sou muito suspeito para lhes fazer um elogio que lhes faça justiça. Preferi ver aquela máquina pulsante feita de cores bem humanas, letras profundamente sentidas, muita onda, daquela que não se diz nos jardins com os amigos, mas que se sente no vibrar do Rui que comanda a tribo com braçadas gigantes e faz com que, mesmo sem os Temple saberem, o pessoal, o bom do pessoal entre em transe de graves, de groove, de guitarras que explodem contra as têmporas e nos fazem pular por dentro, abanando o corpo como convém quando os sentidos são assaltados com esta força elegante. Os Temple, cá fora, lá dentro, são, e eles quase não desconfiam disso, uma força universal, um som da terra eléctrico, para cima para baixo, por dentro, por fora e grandes bandas têm esse mesmo futuro: serem grandes bandas assim mesmo porque tudo o resto é bom mas dotado de relatividade.

Os Icon foram, para dizer a verdade, a banda importante que dividiu a noite. Porque os Icon acima de tudo sabem o que fazem num palco, são músicos de qualidade invejável e que sabem escrever canções e, fora do meu satanicamente correcto, são uma banda de riscos, leia-se, que arrisca. O glam em Portugal é muitas vezes votado como coisa de gente pouco séria e parece que esquecemos a nossa natureza ostensiva de latinos, em que a vaidade, na boa medida, nos enchia de cor, neste caso negro ou púrpura, e enchia as bocas dos personagens dos livros do Eça das memórias de Paris e das injúrias de Lisboa que se lia Portugal então, pouco habituados à sensibilidade que também pode ser dura e profunda de uma rosa. E, quanto a mim, isento de voto nas declarações de gosto que nunca deixam de ser isso mesmo, motor e travões da mesma viatura, acho que os Icon rubricaram um digno espectáculo, com envolvência de ouvido e olho e o rapaz de gravata rosa talvez ou parecido (o barulho das luzes...) na primeira fila faz-me ver que os Icon terão um luminoso futuro à frente deles, um futuro de identificação esteta, e de voz cada vez mais própria que eles sabem e conhecem e, como todas as bandas, precisam. Não sei se foi verdade se o Johnny Icon se fartou da pretensa apatia do público, se não, tudo é mito, lá diz o filósofo, eu teria ficado até lhes ver o branco dos olhos mas tudo se encaixa no seu lugar e o tempo leva e traz das margens tudo o que precisamos ou podemos deixar sossegado.

Para nós, depois foi fácil e não foi sómaisum...Assim que entrei, assim que saí, assim que tive um espaço livre na agenda ocupada da minha cabeça e pensei neste artigo achei, e corrijam-me os Shadowsphere, os Temple ou os Icon (and the black roses) se estiver errado, e também os cerca de mil que lá estavam, a primeira coisa que me ocorreu foi a de que se passou um belíssimo bocado de entrega, de qualidade, de empatia até na apatia, de, porque não, respeito e amizade, com bons e diferentes concertos provando que com as cartas certas e a perspicácia e inteligência reconhecidamente lusa se podem fazer noites destas em que, longe de me sentir um “padrinho” da cena, me senti apenas muito contente de assistir a bons concertos de bandas inteiramente portuguesas. Gosto de pensar que o facto de partilharmos o palco essa noite também ajudou à causa e à coisa, mas isso são as bolachinhas no leite, um mimo que dou à minha cabeça cansada nesta noite depois de mais um dia intenso de criação, nesta noite em que chove frio, luz e promessas de descanso a meros passos de chinelos.

Obrigado aos intervenientes neste artigo por me terem dado (belíssimo) assunto. Até à próxima...bem...mania...

XVI

Em 2005...

Os lapsos temporais e pessoais de 2004, o ano que morreu para todos, menos para a nossa memória, só nos permitem ver para trás aquilo que deixámos e que queremos arrumar nas prateleiras das palavras, ocultas na mascarada da passagem das horas que nos conduzem, quietos, a números cada vez mais próximos do nosso fim que não sabemos quando, mesmo enquanto caminhamos para ele.

Mas, hoje à noite, outra vez frio, prefiro falar do futuro que já entrou, excitado pelas primeiras águas, na nossa vida de sempre, vamos a isso:

Em 2005 quem nos perceber irá continuar a perceber-nos.
Em 2005 os invejosos continuarão a invejar.
Em 2005 os que não vão a lugar nenhum chegarão aí mesmo.
Em 2005 o anti-voto ganhará as eleições em Portugal.
Em 2005 o buraco continuará tapado.
Em 2005 falaremos todos demais e faremos todos de menos.
Em 2005 quem não nos perceber não nos irá perceber
Em 2005 os inspectores continuarão a inspeccionar
Em 2005 o poster gigante da peça Confissões de Mulheres de 30 continuará a abrandar o trânsito em Carnide.
Em 2005 continuaremos a ser o centro do universo.
Em 2005 ainda não iremos descobrir isso.
Em 2005 o que é nosso ficará intocável como sempre.
Em 2005 ainda apitarão nervosos os condutores dos carros atrás de mim porque me recuso a ter uma morte pouco poética e ficar com chapa na pele.
Em 2005 continuarão a escreverem-se coisas que não percebo porque umbilicais
Em 2005 serei um ambíguo para muitos.
Em 2005 estaremos todos optimistas por sentimento até à primeira contrariedade.
Em 2005 continuarei a inventar artigos no meu laboratório.
Em 2005 ainda se discutirão gostos.
Em 2005 essa discussão terá a inutilidade de uma inevitabilidade.
Em 2005 torceremos o nariz uns aos outros.
Em 2005 vamos pensar-nos superiores aos outros.
Em 2005 um homem sem nada a perder será ainda o mais perigoso dos seres.
Em 2005 um homem sem nada a provar será ainda o mais perigoso dos seres.
Em 2005 fecharemos os olhos ao deleite da música que gostamos.
Em 2005 encontraremos a beleza.
Em 2005 perderemos a beleza quando olharmos para o lado e perceber os segredos dos lábios em sopros.
Em 2005 Portugal será belo e triste.
Em 2005 os políticos terão sempre corpo de intrujice e bocas de mentira.
Em 2005 ao fundo e para cima serão movimentos populares.
Em 2005 ouviremos os nossos discos passados com um gosto irrepetível.
Em 2005 ouviremos os nossos discos recentes em comparação sempre.
Em 2005 o mundo terá um passo próprio.
Em 2005 tentaremos acertar o nosso passo com ele.
Em 2005 chegaremos atrasados ao nosso próprio ser.
Em 2005 estaremos adiantados às nossas reais capacidades.
Em 2005 compraremos coisas inúteis mas ainda bem.
Em 2005 nos aparecerão, espontaneamente, momentos inesquecíveis da nossa vida.
Em 2005 não farei outro artigo assim.
Em 2005 continuarei a observar-me.

A observar-vos.
A ser observado.

Em 2005 quero ter mais actos e menos palavras se bem que as palavras sejam os meus actos.

Em 2000 e sempre quererei de mim as coisas que sempre quis para mim.

Bom ano, whatever it hurts (Tiamat)

XVII

Solidão

Estique-se até o ao fim o prazo, porque não? No fim surgirão imagens, talvez as melhores da nossa vida ou do nosso dia que ficou para trás e que já não volta. Bem, cá vamos nós outra vez.

Escrevo os artigos da Loud, regra geral, à noite sem falsos romantismos só porque muitas vezes assim calha na ausência do tempo, do assunto, do com que vos entreter ou com que puramente encadear a matéria do desprezo que tanta falta nos faz a nós, portugueses, críticos que fazem melhor por natureza; fazedores apenas, ou por sorte, ou por estrutura, ou por milagre (escondido e revelado), leprosos na dor do sucesso que encolhe os ombros e solta o suspiro ou a gargalhada.

Penso, por analogia, num locutor de uma rádio pequena (já que nas grandes nem me apetece pensar), a estas horas faz um programa em que fala, fala muito, tal como eu aqui escrevo, escrevo muito. Surge então um convidado aquelas horas da noite para falar ainda mais com o primeiro e falam entre os dois nesse magnífico éter que talvez, cientificamente, transporte mesmo as ondas de som, não sei tenho de averiguar.

Pois bem quem nos ouve, quem nos lê, quem se importa? Mas o silêncio é o que existe e as palavras estão para o silêncio como a vida está para a morte. No oposto valorizam os seus antónimos. Fazem com que tenhamos sequer oportunidade de os contemplar e de saber da sua existência. Tal como a música que ouvimos e se ouvimos música com densidade no ritmo e na palavra é porque, talvez, o silêncio também nos diga algo ou pelo medo que temos dele ou pela curiosidade em de vez em quando o ouvir (sem aspas de propósito).

Há umas horas telefonou-me o nosso ilustre director que conheci há anos, numa altura em que eu era menos puto que ele, mas pouco (no melhor dos sentidos) em circunstâncias infernais mas inesquecíveis para ambos e hoje ao telefone o mesmo dilema se calhar com visões diferentes. Será que há alguém a ouvir? (Comigo não é a folha em branco que me assusta Zé, é o branco depois da folha preenchida.). Será que vale a pena fazer? (Comigo não é o que digo, é só aquela cena de eu não facilitar, sabem?, de ninguém perceber o que escrevo aqui, de eu ser o pseudo-filósofo a queimar espaço a bandas se calhar, aquele “traidor” que se passou para os góticos sim que esses fingem ler e por aí fora, bem onde a noite me leva...)

Outro dia fui ao cemitério do Alto de S.João assistir à cremação do pai do meu novo tio e por lá dei uma volta (gótica) a sentir curiosidade e medo e lendo palavras que sendo simples muito diziam da música, da vida, da ocupação do silêncio, lembram-se? Num topo de uma jazigo lia-se, em inspiração definitivamente teatral, FIM. Impressionante e revelador. Outros diziam outras coisas, um tinha uma estátua de uma mulher na porta com o dedo sobre os lábios a pedir e a representar o silêncio. Mas voltando atrás, que ainda posso, para que facilitar, para que tratar as pessoas como animaizinhos decibélicos que babam cerveja e lêem exclusivamente e com suores frios Tolkien? O que importa? Não percebo nem nunca irei perceber.

Mas sei que o locutor da rádio pequena fica com um calor no peito quando acaba e desliga as luzes da casinha pré-fabricada, que o entrevistado também vai para casa e diz à namorada que correu bem com um sorriso, sem pensarem se alguém ouviu, assim como eu e o Zé Rodrigues também temos o tal calor no peito quando teclamos save (ou guardar...) e depois, mas só depois pensarmos se alguém realmente ouviu, alguém realmente leu, alguém realmente se importou e deu continuidade ao ciclo. Porque só na solidão se promove a companhia, porque o viver a muitos é como a música que dá valor ao silêncio, como a vida que faz entender a morte que faz viver ainda mais e melhor, e, por vezes, ao contrário, e por vezes ao mesmo tempo. Para quê facilitar? Melhor que conseguir é ainda tentar porque no tentar está o conseguir e pode ser que algum dia alguém leia num cemitério distante (se me fizerem essa maldade do enterro) “pelo menos tentei” e isso lhe faça sentido.

Mais sentido do que passar a noite a alvejar as aves porque não se conseguiu voar. E esta foi roubada a alguém cujo nome não me apetece confessar.

XVIII

The eternal spectator goes around Europe: notas de uma viagem sem fim (à vista)


O terror e a incapacidade de chegar aqui, respirar, tomar uns momentos antes de arrancar e vos dar uma descrição detalhada do que se passou desde o primeiro minuto, a sair para o frio e para a noite de Bruxelas, entre piadas e kebabs, até agora, não fazendo ainda a mínima ideia de como será o dia, o espaço, as pessoas, se terei de outra vez de me equilibrar nos meros 50 cm que me separam dos bombos do Mike, é algo que todos vós poderiam esperar se seguem esta coluna, dobrada ou firme, conforme o sabor dos meses.

Talvez o que não saibam é que estar em tour, sem dilatações poéticas, é apenas um misto de aborrecimento e de efusão, de lentidão deprimente e de velocidade estonteante, de pressa e de vagar, de nada acontecer em horas e tudo se jogar em minutos. Claro está, há muitas maneiras de estar em tour, já passei por umas quantas, mas desta vez somos uma banda suporte e as coisas são diferentes, com as suas vantagens e sim, infelizmente, as suas desvantagens.

Mas voltando à rotina. Estou agora em Copenhaga, Dinamarca. Correram provavelmente seis anos desde a última vez que tocámos aqui, o mais normal é que ninguém se lembre, pois o Metal de hoje também tem memória curta e apesar do passado ser credo em todas as bocas quantas vezes não damos por nós a pensar que som ou banda era aquela antes de as listarmos nos favoritos ou na lista negra? A única coisa que sei agora é que atrás de onde estacionámos há um jardim infantil, com umas casinhas pequenas e que o clube se encontra no prédio à nossa esquerda. Sei que quando entrar na porta do clube (e principalmente se levar tudo quanto preciso para o concerto) é como se estivesse a entrar num outro mundo do qual só sairei mais tarde (os concertos são horrivelmente cedo sempre por volta das 19.45 na Europa) para regressar a uma casa (tourbus) que se move e me leva em direcção a outro e mais outro mundo. O que no caso de amanhã será uma longa viagem até à República Checa para tocar com Root (horns up!). Como tal imaginem uma vida contrária em que se dorme em movimento e que só temporariamente se está assente nas estruturas sólidas de um edíficio. Sem ironias budistas, é mesmo uma questão de equilíbrio.

Quando este Spectator vos chegar muito provavelmente (e espero que sim) muitos de võs já tiveram a oportunidade de ver os momentos pelos quais, embora em circustâncias diversas, todos esperamos: o espectáculo magistral dos Cradle que é um pouco como um concerto de Maiden aplicado ao Black Metal, nós que sendo sempre a mesma coisa nunca o somos verdadeiramente, os the Haunted que até à altura ainda não chegaram ao nosso convívio. Enfim tudo o que irão ver é um resultado de coisas muito menos interessantes, acreditem, planeamento, espera, cumprimentos de ocasião, cálculo, testes, exercícios de paciência e muitas vezes jogos de poder. Mas não quero e nunca quis passar versões definitivas do que este mundo é tanto porque ele é muitas coisas, transforma-se com uma facilidade assustadora e o sentimento embora comum encontra formas de expressão que podem ir do alcoolismo ao budismo. Eu ainda resido na dúvida entre vos dizer sim mas tudo isto vale a pena por aqueles 45 minutos em palco, ou não tudo isto é uma fantasia e anseio por voltar para a companhia dos meus. Tentem entender que o perfeito neste estilo de vida é uma ilusão que não se pode alcançar porque também aqui só se está bem onde não estamos e por aí fora.

Impressões gerais:

O público de Cradle é muito novo, ainda não me habituei aos pais/acompanhantes. A senhora que pergunta o que quer dizer em francês Your mother should have swallowed antes de comprar a t-shirt ao filho. Aliás outro dia quando anunciei a Alma Mater e depois a tocámos em Estocolmo senti-me (e isto é muito estranho) tipo Grateful Dead e a música tem apenas dez anos. Ainda é muito cedo para sermos lendas mas algumas pessoas que estão aqui hoje tinham 5 anos na altura, tenho de me habituar à ideia.

A nossa relação com os Cradle é muito boa, afinal já vem desde 1994, e muitas histórias tem sido recordadas numa atmosfera calma, sem abusos, porque convém acalmar as marés e as vidas tem de ser vividas para além daqui ou do hoje.

Ainda estranho um pouco esta tour pois não estava, confesso, à espera dela. A minha cabeça estava no DVD e no disco novo e assumir estas vivências assim a seco ainda custa apesar de já ter perdido a conta às minhas dúvidas existenciais. E como podem ter percebido ainda não é desta que ficarão esclarecidas.

Ontem em Oslo tivemos o nosso melhor concerto até agora, bastante diferente de quando tocámos para zombies verdadeiros a primeira vez em 1995 com Morbid Angel e Immortal, mas queria destacar Wiesbaden/Frankfurt na Alemanha onde saímos sobre um zugabe (Alemão para só mais uma!) considerável. Mas temos ainda muitos concertos pela frente e já que não podemos descer mais the only way is up! J

Agora será melhor preparar a minha entrada no outro mundo (no clube), trocar uns acenos de cabeça e uns sorrisos de ocasião com pessoas que vejo com intervalo de anos, comer uma sandes de queijo e um café com leite e deixar o dia completar a sua lógica de velocidade e lentidão. O dia irá começar e acabar em duas horas intensas. O resto fica nas mãos do destino.

Spectator
Return to the eve


Conssummatum est! Bem até uma próxima...

Num convencional flash já me encontro outra vez perante o desânimo da vista da minha janela emprestada, entre papéis e notas para não me esquecer da vida, televisão acesa num programa chato de diálogo, luz diurna para começar mas concerteza já escura e artificial quando acabar, enfim, para quem já sabe ou nem por isso, o ambiente perfeito porque possível para outro artigo do Spectator, desta vez em penosa transição entre o que já sei que vou escrever no futuro mas que ao futuro ainda pertence. A poeira da estrada ainda está por assentar, tenho a certeza que ainda há meias sujas e amarrotadas nos confins dos intermináveis sacos de viagens, ainda encontro coisas que julgava perdidas. Não estou na Dinamarca, nem vou entrar pela aquela porta num outro mundo, estou assim como num limbo que talvez seja verdadeiramente onde se vive esta vida, com muitas portas, outras tantas fugas, alçapões, janelas, quadrados abertos no chão ou na cabeça, a luz do nosso país, desigual e inigualável, cansaço nos ombros de todos os copos revirados na noite ateniense, enfim as palavras aqui são como ratos que correm na roda da gaiola, sempre a chegarem ao principio de onde vão outra vez partir.

Primeiro sinal do mundo dividido: um dos concertos com Cradle passou por Madrid, talvez o mais estranho dos concertos, com um público apático, pouco dado a colaborações com as bandas, de vez em quando dando o sentimento, e espero estar errado, de serem demasiado importantes para aquele concerto, rindo naquele riso de lado, estranho, muito estranho e uma novidade (má) no historial desta cidade. Valeu a ida ao Prado, ver as obras primas da dor, da morte, da cor, que pregadas nas paredes se deslocam até ao nosso coração e ao centro das nossas decisões e lá ficam para sempre. O Jardim das Delícias, o Triunfo da Morte, Saturno devorando os seus filhos, enfim rendido ao importante quase me esquecia dos estranhos acontecimentos na capital que, felizmente, não é nem será a nossa (apesar da sua cativante beleza e importância).
Recebo informação de que a Metal Hammer Espanhola quer fazer entrevista, estando eu já no meu sofá (também emprestado) e sinto agora o peso de estar num sítio, nada acontecer e depois a milhas de distância falar, em inglês, ainda por cima, e ao telefone passando por cima do meu portunhol que tanto gosto de exibir e claro está esmagando o contacto pessoal perdido nas burocracias das editoras, dos managers, das convenções mais simples.

A carga espanhola chega logo à segunda questão com trejeitos freudiano-filosóficos (águas que se devem separar): “Todos nós temos um ego. Tu e os Moonspell também devem ter um (etc.)...como se sentem a abrir concertos para COF visto que são uma banda tão grande...etc...”. Defesa portuguesa pronta na ponta da língua: “Se estivesse na música por questões de ego já teria desistido há muito.” Recarregar fora do ecrã, torna a disparar “se as pessoas querem que Moonspell feche todos os concertos levantem-se dos sofás (or whatever) parem de queimar e de retirar discos da net e comprem os nossos discos tanto como compram Cradle e aí sim terão “os sonhos” de nos verem no fim realizados.”
Diagnóstico e ao mesmo tempo o cerne do artigo mensal: O Ego. Passe a ironia dos músicos e dos jornalistas, esqueça-se o pecadilho de “picar os chouriços” (expressão feia mas que tanto adoro...) comummente, em especial quando se está tão por dentro da cena que quase se sai de órbita, esta é uma questão que parece ter criado uma confusão imensa desta vez, até alguma polémica e que merece o olhar aquilino do Spectator.

XIXX

Estrogéneo


Cada artigo que escrevo para entregar à voracidade do mês que finda ou começa ou está ao meio quando alguém arranca a revista à impessoalidade da vitrina da montra da papelaria, à tortura daquele ganchozinho maléfico dos quiosques ou porventura de destinos parados bem mais cruéis, constitui uma encruzilhada na qual todos os caminhos são insatisfatórios, pelo menos para mim que não sei bem o que quero ou porque estou aqui.

Os dois caminhos principais são de fácil compreensão. Um é o que tomo quase sempre. Chamemos-lhe o da preocupação. Só me preocupando com as coisas me consigo ocupar delas. Por muito que se floreie é assim, ponto final, sem parágrafo. Outro, o que me apetece mais mas pelo qual nunca consigo caminhar é o do não querer saber. Enfim, num pergunta-se porquê, e no outro para quê? E ambos terão as suas dores, os seus prazeres e as suas justificações.

Agora sim, destaca-se a linha. O primeiro caminho é o que me faz não só vir aqui todos os meses criar ou destruir ideias, mas também aquele que me mantém na luta, algo do qual não me vanglorio pois, ao contrário dos heróis, eu luto apenas por necessidade. Á falta desta faria outra coisa que me deixasse respirar melhor à noite. A segunda rota tem a particularidade de ser a rota lógica porque as palavras estão sempre cheias de vazio e em última instância elas podem pouco perante os factos e porque afinal, mea culpa o Metal é algo que se ouve e que pouco se pode debater. Mas apesar disso eu e tantos outros enchemos o caminho do porquê com os nossos conceitos, engarrafamos a estrada com as nossas convicções, acampamos nas bermas à sombra devoradora da nossa ânsia de entender e explicar. O outro caminho, o do para quê, afigura-se-nos como uma estrada lisa e fofa, ladeada de laranjeiras, com tijolos amarelos de ouro a marcar a direcção por onde andam os que não têm tempo, ou dom, ou inteligência, ou vontade de se chatearem com o vaivém destes códigos que inventámos para nos entendermos ou talvez não.

Por isso cada vez que lerem esta coluna dobrada a um canto destas páginas do caminho do porquê, pensem pelo menos que eu sei da existência da vanidade das palavras e das ideias, que eu sei das laranjeiras e do ouro do outro caminho mas o que eu não sei, ainda (apesar de alguma prática diária) é estar calado, deixar de lutar com as palavras, passar-me para o outro lado que não tem mal nenhum. Porque, na verdade, talvez eu sinta falta do mal, talvez eu sinta falta de acordar e pensar que mesmo que ninguém se interesse vou fazer à mesma, e outras idiotices e bravuras do estilo que, infelizmente, é o meu.

Por isso quando saio da carrinha que me leva a um dos poucos festivais que temos a sorte (sublinhe-se esta maldita palavra) de tocar este ano para entrar numa estação de serviço e comprar, não sei porquê nunca, um Magnum taste que sabe a dissabor, uma conversa com o promotor e manager dos Épica leva-me a pensar que é tempo de me preocupar com este epifenómeno do Metal feminino e finalmente escrever sobre ele. Este promotor porreiríssimo, grande fã de Metal, é também responsável por um festival na Bélgica chamado Female Voices Festival e o nome diz tudo. No alinhamento só tocam bandas cuja tónica seja a voz feminina, catalizadora de todas as atenções, discutíveis ou, não e este ano os cabeças de cartaz são os meus amigos e amiga de Lacuna Coil acompanhados pela delicadeza de uns Épica, After Forever, e outras (passemos a utilizar o género) bandas, todas contextualizadas no tema do festival. Eu, Spectator, caminhante do sarcasmo, escrevente de serviço, enfim vós sabeis, provoco: “Mas isso é sexismo”. Resposta e digo-vos do fundo do seu coração: “Não! É um novo conceito.”

Facto é de que as coisas mudaram muito desde as t-shirts largas e botas gigantes das metálicas que eram em tudo iguais a nós, até demasiado iguais com as diferenças óbvias que só os mais afortunados descobriam. Quem não se surpreendia quando a nossa colega ou namorada metálica vestia uma saia? Hoje em dia seria absurdo pensarmos e sentirmo-nos assim. Depois, as mulheres saíram das sombras mais ou menos elegantes do back-up singing (coros) e chegaram-se à frente. Muitos me irão recordar da Doro Pesch, das Girlschool, das Derketa, e por aí fora só para eu lhes recordar de volta que todas essas eram excepções a uma regra não escrita da nossa sociedade que o Metal, sem juízos de valor abraçava, a predominância numérica dos homens no estilo. Não eram um conceito que conseguia reunir milhares de pessoas num festival temático ou vender milhares de discos como os Nightwish, Evanescence (sim eles vendem discos a pessoas que ouvem Metal) ou Lacuna Coil (idem) a banda mais bem sucedida de sempre da Century Media.

Abrindo caminho: As experiências começaram a sucederem-se e bem e estas damas conseguiram impor o seu território, conseguindo o seu público, beneficiando de uma necessidade de muitas pessoas ou de uma ansiedade em ver a fusão de feminilidade com o estilo, porventura sempre pouco dado à doçura destes arranjos e destas posições mas que agora se escancarou por completo às vozes, aos olhos, aos vestidos, aos cabelos, aos encantos que já tinham valido aos homens do Metal, diamantes talvez um pouco mais em bruto ou brutos, por assim dizer.

E estamos perante um fenómeno. Não sei se um novo conceito, se uma nova necessidade, se algo passageiro, se algo para ficar. Sei bem que nós, os produtores maiores de testerona, não podemos dar aquilo tudo que uma ruiva Simone dos Épica transmite ao vivo; mas não nos podemos esquecer daquela sombra negra e sensual de um ainda inigualável Peter Steele. E é assim que devemos permanecer: na expectativa de uma encruzilhada. De saber se haverá espaços para ambos. De saber se um não comerá o outro. De saber se não teremos nós de vestir os corpetes e livrar-nos da nossa base de virilidade. De saber se algum dia teremos que formar quotas para tocar em festivais, e queimar os nossos boxers negros na praça pública.

Esqueci-me foi de perguntar ao meu bom interlocutor se uma banda como os ArchEnemy teria sentido nessa festa ou de perguntar ao meu amigo Andrea Ferro (LC) como se irá ele sentir quando a sua voz de homem ecoar, solitária, na noite daquele festival das vozes femininas. Bem, terei de ser honesto neste finalzinho antes de me pôr a andar daqui e dar-vos mais um mês de descanso, e dizer se calhar não me esqueci de perguntar mas apenas tomei o outro caminho, aquele caminho porreiro e sem sobressaltos do para quê?

Castrato ma non troppo:


Ps: já agora colegas da Loud aproveitem a embalagem e peçam ao CG para fazer um historial do Female Metal, aposto que seriam umas belas páginas.

XXX

Mapa mundi

Garanto-vos que este folclore de escritor não será para manter mas estas linhas hoje, de facto, parecem obedecer a todas as regras dos que costumam escrever a sério:

- Bar/restaurante de hotel em Tampere, Finlândia, a meros minutos de me sentar (noutra!) carrinha para mais duas talvez três horas de estrada a caminho de um festival de música pesada perdido no meio dos belíssimos lagos e das conservadíssimas florestas deste belo país (não vale a pena falarmos nisso).

- Chuva miúda lá fora nas janelas grandes do restaurante Huvi Retki, a fazer remoinhos nas águas tranquilas do lago, vistas do parque, luz ambiente…penso que o resto deduzirão por vós mesmos.

Eram quase duas ou três da manhã e estávamos naquele corredor estranho e imundo à frente do Paradise Garage, onde quando se sai de um concerto as pessoas se apertam para deixar passar a tangente dos táxis e dos carros dos aventureiros; onde se espera pela assinatura dos que passadas horas recolhem do seu trabalho e prazer; onde se trocam opiniões, tantas opiniões como à porta dos cinemas que ainda o são, dos estádios onde deixámos um bom pedaço dos nossos nervos e por aí fora, em locais de muita emoção e, às vezes, de um pouco de razão.

Somos, se não me engano, cinco, por vezes seis, eu o meu inseparável Eduardo Viana, o Kobi dos Orphaned Land bem como mais músicos desta banda de Israel, que visitava pela primeira (espero que não seja a única) vez o nosso país na primeira parte dos já mais habituais Paradise Lost. As ruas e o corredor tinham esvaziado bem como as esperanças quiméricas do copo aftershow, de mostrar a beleza e o perigo nocturno da nossa cidade, um corredor onde ninguém permaneceu à excepção destas pessoas, nós, que nos víamos pela primeira vez e talvez única em anos e que conversávamos, conversávamos, alheios aos despojos da noite, ao lixo disperso, às garrafas vazias, aos cambaleares alheios, aos olhares de quem já não estava, às teorias que nos interessam (acreditem) muito mais a nós do que a qualquer outro que as ouça.

Seis ou cinco ou talvez quatro, já sem copos nas mãos para disfarçar, sem barulho que abafasse as nossas palavras sinceras, apenas com a conversa na ordem dos nosso olhos. Eu e o Kobi (vocalistas) sucedíamo-nos nas palavras. Esse é, para além de cantar ou vociferar ou simplesmente cumprir, o emprego da quase totalidade do potencial das nossas cordas vocais, directamente ligadas ao nosso cérebro, o nosso passatempo preferido, o terror dos nossos amigos que, fundamentalmente, ouvem. Os vocalistas são ora túmulos sem nada a dizer ou então tagarelas com desejo de não se calarem apesar de ser isso mesmo o que se espera deles: a torrente das palavras. O silêncio fica a cargo de quem ouve, desculpem-nos. Um tagarela que vive num túmulo e que sai de vez em quando para nos iluminar ou escurecer é um mito, ou um esforço de um mito. Dois vocalistas, um crente em Deus, outro nada disso! (adivinhem qual), muita diferença da experiência e da opinião da vida que falavam desta mesma e, inevitavelmente, de uma das suas grandes paixões: a sua pátria, o seu país, o seu sítio. Nota para as diferenças em relação a Deus, perante esta fluidez de conversa e de amizade, penso agora quão deprimente é a atitude de Dave Mustaine perante a irreligião dos outros. Que ditadura da tacanhez, que atitude digna de um inquisidor moderno mas sem poderes, que falhanço. Holy wars my fuckin ass!
Desabafo consumado voltemos ao que interessa: falava eu de Portugal de olhos a brilhar e coração a doer e o Kobi no mesmo tom acredito falava de Israel. E seria longo, muito longo apontar os comuns desconhecimentos, o sol dos nossos países, as bombas nas fronteiras do dele, as bombas relógio emocionais que são os Portugueses a braços com problemas e com pessoas que brincam, em consciência ou não, com os nossos problemas mas retiro de tudo isto o sentimento partilhado pelas nossas bandas, aquilo que afinal faz com que esteja aqui, estivesse ali e que nos tivéssemos encontrado: o isolamento.

O Kobi e os Orphaned Land sitiados num país quase feito à pressa, em jeito de compensação ou retribuição ou teimosia; eu num país feito tão devagar que muitas vezes parece que a terra parou sob os nossos pés. Ele numa terra de bombas anunciadas pelos olhos tremidos das câmaras, pelas palavras isoladas da promoção do medo. Ele disse-me “não se fala de mais nada”, acredito que assim seja, a caça excita-nos sempre mais que a cultura. Eu numa terra de números, de desvios, de espantalhos sentados em cadeiras de pele num edifício tristemente célebre com leões aos flancos na única pose séria naquele palheiro da pedra. Eu digo “falam sobre nós sem sequer serem um bocadinho de nós”. Nós que ainda carregamos o fardo do isolamento por muitos companheiros que surjam, nós os únicos na ponte que construímos, a ir e a vir, a ir e a vir, nós a vermos as bandas suecas e finlandesas chegarem com dois paus de fósforos onde nós não conseguimos chegar nem com um camião cheio de mármore. Nós com bandas que questionam o sistema sem pensar que na prioridade das questões estamos nós próprios!!! Eles não sei mas pero que las hay, las hay…

Nós povo engolido pela sombra dentada de Espanha, um vulto marreco de uma grande nação sobre o nosso rectângulo suado e gasto dos abusos do poder. Eles numa concha-estrela de seis pontas, cercados de poderosos prontos a não cederem um milímetro da sua fé no ódio e no óleo, cercados por dentro e por fora. Moonspell e Orphaned Land oásis num deserto sueco, frutos e flores enraizados no isolamento.

Lá dentro no concerto Orphaned Land, alegria em tocarem, as bodas de Canã, com os seus excessos e sorrisos mas alg genuíno, puro de quem toca pela primeira vez em quase todas as noites. Já sabem que nada mais há a dizer do concerto porque não faço críticas e já agora nem sequer as entendo.

Cá fora o abraço dos que não desistem de se questionar e de atravessarem o deserto do isolamento e da ditadura do conforto que vai de Estocolmo a Gotemburgo, de Los Angeles a Helsínquia ou Londres, com passagem, sim, com passagem e paragem em Tel-Aviv e em Lisboa.

“On Earth we are all…” Samael

XXXI

Metal Summer

Depois das atribulações de um mês e de muitos dias de acontecimentos inesperados e de outros sempre esperados mas incontornáveis, volto ao passado na presença renovada do vosso convívio que tanto prezo e que me esvaziou de algo nestes dias todos em que não voltei ao laboratório das palavras, que ainda me encontro a arrumar. Ou seja, nada mudou, continuo a sentir-me mais seguro no trabalho dos dias do que na anormalidade das férias que nos fazem engolir a cerveja que o nosso corpo já não pede, os petiscos da praxe, ir da praia, vir da praia. Muitas vezes as férias são mais o ritual do descanso do que o descanso ele mesmo: talvez só o descanso seja aquele momento intermédio entre quando acabamos algo e nos preparamos para iniciar outra coisa.

Tal como disse no ano passado venha o frio! , a vontade de fazer algo, o fim do ritual da diversão e da boa disposição, venha o pensamento, a melancolia, a reflexão, o casaco e a chuva! Acabe o Verão com as suas línguas de fogo e convenções, reduzam-se as férias ao mínimo essencial e partilhem-se por todas a estações. Afinal nem só do stress da preguiça se pode o homem valer nos tempos que correm.

Mas…nem sempre foi assim e por muito que evite, aqui vou eu a caminho do passado: antes de termos todos um carrinho com a mala cheia de chapéus-de-sol e toalhas, antes do saneamento impiedoso do “tijolo” que gritava Thrash Metal em toda a sua potência nos transportes, o Verão era excelente. Um esforço que durava uma noite (a anterior) e um dia inteiro de apanhar transportes (camioneta, camioneta, barco, caminhada), de carregar (sandes de ovo e/ou salsicha, cassetes –lado A Pleasure to kill, lado B Bonded by blood-, bronzeador…nem pensar!), os ténis bota atados de lado na alça da mochila. As velhas senhoras a apertarem-se no banco, os rufias de certos bairros a meterem-se connosco. A competição contra o Rap, contra o Techno, contra os U2, sempre ganha pelo volume brutal de um bom Onslaught. As bandeiras espetadas na areia, os territórios marcados, os olhares penetrantes mas sem passar disso, um Verão passado com esforço pontuado pela alegria do duche morno na casa dos pais para tirar o sal dos chapanços e das boleias de mar e pelo sono pesado e reconfortante para acordar no outro dia e fazer tudo de novo, escolher as cassetes, mexer os ovos, vestir de preto e enfrentar o Sol ao som alto do Thrash Metal.

Era assim o Verão para mim e para muitos outros. Longe das convenções dos carros e parques; do sentar na esplanada a curtir a vista e o sabor; longe do evitar as confusões, abraçando-as, comendo sandes com areia apanhada nas lutas da praia, horas de camioneta, de caminhada, de barco. Era verdade que se aligeirava aqui e ali: as t-shirts de Kreator davam lugar às de MOD, havia quem arriscasse umas bermudas mais Hardcore, as botas Vision iam aparecendo graças aos Sepultura e antes deles aos Anthrax (se não me falha a memória) para quem os pudesse comprar e a camaradagem era mais que boa, mesmo para os tímidos como eu, escondidos atrás dos decibéis do meu rádio, com a t-shirt de Onslaught emprestada, versão Verão, com que as pessoas se metiam.

Tenho saudades confesso. As pessoas eram simples e os metaleiros/metálicos (suit yourself) também. Bastava o aspecto, o som, a praia escolhida e amigos para a vida! Amizades de Verão…Tentem agora levar algo mais que o discreto MP3 que já vi pessoas a pedirem para baixar o som que entra nos nossos ouvidos à nossa responsabilidade, tentem os transportes, tentem tudo. Ao contrário dos animais cobrimo-nos com a vergonha das roupas e das sociedades. Voltámos à caverna das urbanizações cheias de gente, será gente? E as praias a perderem de vista sem uma bandeira, sem um som mais alto, sem umas botas grandes e velhas penduradas algures. Tornámo-nos discretos, dispersámos as matilhas. Resta-nos os encontros ao vivo. Resta-nos o trabalho e o conceito (pessoal) do descanso. Resta-nos andar para aqui neste país que acolhe o indesejável e estigmatiza a liberdade de quem quer ouvir, falar e sentir alto.

Mal posso esperar pelo frio para me mostrar mais. October rust,


Ps: tenho um endereço novo no meu laboratório. Enviem as vossas observações para: loudspectator@gmail.com


Summer Playlist: Exodus- Bonded by blood
Kreator- Pleasure to kill
Onslaught- Live (Metal Forces)
Metallica- Ride the Lighting
Sepultura- Schizophrenia

Praias: Praia de S.João, Costa da Caparica (sem dúvida!)

XXXII

À hora do fecho

É do meio de uma tempestade de fogo e sono que me queima a cabeça por dentro que palavras assim seguem directamente de uma voz discretamente humana que (mais vezes do que eu gostaria) se confunde e assemelha, para algumas pessoas, a algo de rebuscado, vindo do alto dos céus ou das profundezas do Inferno e nunca do nível das terras moles ou duras que todos pisamos nos dias que deixamos correr.

Estou hoje especialmente cansado, tenho uma pedra bicuda a querer rasgar-me a garganta por dentro, os meus dedos movem-se à velocidade doente da espertina dos insones à força (quatro horas de escuridão e silêncio totais dormidas), os tendões do pescoço esticados pelas fúrias dos sentimentos e da música, os ossos pesados ao fundo das costas, estômago de pequeno-almoço de hotel à espera de sopa alentejana à espera fora do frigorífico, pálpebras desesperadas pela hora do fecho.

É assim um dia não, sem nada a dizer, sem nada a sentir, sem nada a opinar, sem Metal, sem som eterno, sem as nossas polémicas de sempre, sem os nossos consensos de sempre. Apenas à espera do que há para fazer a seguir, ir ali, estar aqui, pensar nisto, recusar aquilo, dizer que não tenho tempo às pessoas, tentar com que as coisas corram bem, ser amigável mesmo no meio da tempestade de fogo sonífero, escrever o artigo da Loud, enviá-lo, responsabilizá-lo, partilhá-lo, ler os vossos mails, os vossos poemas, os vossos interesses, concluir que o Metal é um estilo de solitários que gostam da companhia uns dos outros, ficar contente por um momento com a última frase, com a clareza das palavras que caíram da mente. Depois pensar se ainda há algo mais a dizer, rebuscar assunto no laboratório interno de veias, nervos, sistemas. Questionar: porque é que as bandas se separam e depois se juntam passado pouco tempo num grande festival? Nomes a apontar Emperor (inigualáveis na sua arte, comuns neste regresso), Satyricon (não era o fechar deste festival o fechar de uma carreira que, afinal, continuou?), os concertos Jubileu de tantos outros, Crematory por exemplo, reunião após três anos de separação, será isso que nos falta para chegar ao Wacken ? Mas divago ainda por projectos de uma série de artigos sobre as personagens do nosso Heavy Metal: o Belathauzer e as suas palavras gulosamente profanas; o Jó Theriomorphic , a pessoa mais porreira e verdadeira da nossa pequena cena depois do meu grande amigo Edu Horns (a afastar-me dos parvos do trânsito e a gastarmos dinheiro no Media Markt); alguns enigmas, energias, historietas, coisas que sei e outras que nem tanto.

Não tenho então explicação para me deixar seduzir pela sereia da subjectividade, pelo jogo sujo das palavras. Como é possível estar tudo já escrito ou ter escrito sobre tudo e, no entanto, haver tanta coisa para escrever? E porque espera tudo pelas palavras? A sopa no balcão fria, o estômago reclamante, a impossibilidade de virar o pescoço mais do que a centímetros do ombro, o desconforto das costas desamparadas, a minha gabardina nova esquecida num armário de hotel. Rebusco outra vez nos arquivos do cérebro: essa coisa das canibaletes dos Holocausto Canibal que me mostraram um dia, o encanto dos Portugueses em se mostrarem difíceis e sérios, o entrar num lugar e haver pessoas a tremerem, a baixarem os olhos de vergonha ou espanto, desarmadas pelo sentido deste artigo…esperem eu já digo. Tantos assuntos ainda por observar aqui, a saída da Tarja (é assim que se escreve?) dos Nightwish, o novo disco de Opeth, a Roadrunner nunca limitaria o ilimitável, o metalcore (quando é que isso passa?).
Mas hoje é um dia não. A gabardina, a sopa, os tendões do pescoço, as listas de coisas que há para fazer, o fogo do sono que queima os olhos por dentro, a vontade de fazer tudo a resultar no nada, a questão de que porque escrevo assim numa revista de Metal e não falo de coisas que tenham mais a ver, discos, concertos, histórias de como demos uma garrafa de vinho do Porto ao Marilyn Manson, ou levámos os Rammstein a comerem queijo de cabra ao Bairro Alto, ou coisas dessas. Mas…resposta, revelação do sentido do artigo: a nossa humanidade (nos sentidos todos) e que torna o Metal um estilo de vida, de partilha e, perdoem-me, muitas vezes de polémica sem sentido mas que nos permite, à força ou com elegância, ler, escrever, dizer e ouvir coisas assim ou sem serem assim, nós é que sabemos.

Está na hora de fechar, voltem sempre:

XXXIII

As grandes superfícies

Apesar da sua condição de um dos mais pequenos países da Europa, geograficamente e socialmente, Portugal tem uma apetência pela construção de grandes superfícies, só aplacada pelo uso obsessivo das mesmas pelos Portugueses que as elegem não só como uma primeira necessidade mas como espaço de lazer privilegiado. É só precisar de comida para os gatos ou tentar ir ver um filme mais comercial durante um insuspeito Sábado e Domingo, para verificar essa verdadeira mania social: os carrinhos de bebé em engarrafamentos espontâneos; os pais desatentos enquanto os olhos deambulam pelas tentações envidraçadas; as filas para a igualdade da comida, da bebida e da roupa. Ao que sei vêm aí mais umas quantas enormidades com rótulos de maiores da Europa, cidadelas que vemos crescerem ao longo da estrada, em reservas ecológicas que mudam de importância conforme a ganância desses e por esses espaços, as mais completas, as maiores, as com mais coisas, as que melhor proporcionam esse vício da igualdade.

Ontem, a meros minutos do início da preocupação com o que iria observar este mês, ocorreu-me aplicar este conceito ao que se passa no Metal contemporâneo. Depois das já comuns tentativas mentais, comecei a arranjar exemplos e equilíbrios que me permitiriam uma acepção (que sempre pessoal) mais objectiva desta metáfora que vou usar neste artigo, e que, como enquadrei no princípio, todos nós,
infelizmente, dominamos com a mestria de quem sofre com frequência nos corredores do Colombo, do Vasco da Gama, do tenebroso El Corte Inglês, entre outras “catedrais” do consumo, da despersonalização, da imitação dos consolos da vida.

Deixem-me explicar um pouco o inevitável contexto de que falei: estou neste momento na Alemanha a gravar o novo disco dos Moonspell que se irá chamar Memorial. A minha vida aqui, para além das banalidades e normalidades do dia-a-dia (comer, pensar, suar, sentir falta, apanhar o comboio a horas, essas múltiplas repetições e inquietudes) divide-se em duas grandes metades, também elas divisíveis em muitas outras metades: as gravações e o trabalho administrativo. Se nas gravações se joga com muitas coisas do domínio espiritual que comanda a acção técnica do nosso corpo, a disciplina das nossas mãos, dos nossos pés, das nossas gargantas e diafragmas; quando toca à gestão da banda, entra-se em contacto com aspectos que, sendo importantes, nos fazem sentir estranhamente motivados para caminhos opostos. Um aspecto essencial nos dias que correm, quer se goste, quer não, é o músico assumir ambas as naturezas de criativo e mercador. Quem não o faz enfrenta o risco de asfixiar a sua Arte na gaveta ou de ver terceiros a deliciarem-se com os frutos de uma árvore plantada com o sofrimento e o prazer do trabalho.

Ao longo de todos estes anos aprendi, reconheci e ouvi contar coisas incomensuráveis e com todas elas aprendi lições. Vou resumir algumas delas:

- Anda-se sempre num fio navalhado. Somos como que equilibristas que tentam segurar nas mãos da alma e da mente os conceitos de criatividade, disputa, concorrência, harmonia, todos eles importantes na sua contradição para a construção de uma banda.

- Nada é fácil. Nem a sorte, nem o trabalho, nem as relações, nem as conversas, nem os bons, nem os maus tempos. Mas também, ninguém disse que iria ser fácil.

- É importante ouvir os outros…até certo ponto. É importante não nos esquecermos que somos o outro de um outro. Pensar antes de falar. A voz do sangue guarda-se para a criatividade.

- É importante saber sempre o nosso lugar. Saber dividir os ódios pelas paixões; as felicidades pelos abandonos; o essencial do acessório.

- Para tudo isto não é demais repetir: É importante saber sempre o nosso lugar.


Por isto tudo concluo ainda outra coisa sobre o Metal de hoje em dia – As bandas que importam dividem-se em duas metades:

Umas do lado das grandes superfícies, feitas para agradar o paladar, impressionar a vista. Estas percorrem uma espécie de processo de fabrico e encontram-se todas praticamente pelo menos num dos pontos desse processo. Nesta metade incluo a maior parte das bandas Norte-Americanas de Nu Metal e Metalcore, e, talvez, alguns exemplos Europeus.

Outras do lado do comércio local. São como pequenas retrosarias ou ourivesarias que criam produtos mais personalizados; pequenas frutarias com produtos frescos e originais, que tratam o fã por tu; com atendimento e discussão personalizada.

No entanto, não quero com isto dizer que não se compre um bife delicioso no Continente e que alguma da fruta não esteja podre no Sr. António da vossa esquina. Tudo isto é uma observação cuidada e atenta. Há que saber estar e não se deixar inebriar pela grandeza. Mesmo que abrisse uma grande superfície, com certeza, deixaria um canto bem grande para as coisas do coração e da alma musical. Mas isto sou eu. Resta-nos a nós decidir onde queremos passar os nossos fins-de-semana, onde queremos comprar e o que nos queremos oferecer. Saber o que podemos fazer para nos destacar dos outros, como nos semear e nos colher, onde nos queremos encontrar com os outros, ser uma peça ou o motor. Observar sempre, saber sempre o nosso lugar.

XXXIV

O espírito do tempo: questões.


Talvez a tarefa mais complicada nesta altura do ano (para além de evitar as grandes superfícies) seja a de resistir à tentação de fazer parar o tempo por alguns minutos, para aproveitar o ciclo de morte e vida do ano que finda, entretendo-nos em balanços, resoluções, alegorias e simpatias. Sacudir a morrinha miúda que nos cai em cima durante todo ano e que nos faz acumular decisões e papéis nas gavetas da alma. As revistas escolhem os melhores, as bandas novas acumulam optimismos, as velhas empilham esperanças no coração, toda a gente se ri e pensa que este ano é que vai ser, desta é que é, e assim se cumpre o instinto mais nobre de todos nós: a sobrevivência nesta espécie de conveniência de nos mentirmos a nós próprios para nos tornarmos mais genuínos e combativos. Do outro lado da ponte, há outras que tentam forjar indiferença por este tempo, melhor, pela sucessão deste tempo, pelo passado e presente que por meros momentos se tocam para se abandonarem por um ano e se tornarem a encontrar noutros momentos, tornando mais confusa, ainda, a nossa existência.

Os equilíbrios dão sempre jeito. Ao artista que à altura de quatro ou cinco andares caminha por um arame fininho junto ao tecto da tenda que faz as vezes de céu no circo. Àqueles que, por força magnética da vida, andam mais junto ao chão, tentando ver qual o supermercado mais barato ou onde/como podem fazer os seus filhos sorrir sem que a todos lhes doa a barriga de fome depois. Daí que, nem fazer muitos balanços, planos ou resoluções; nem afectar superioridade ao que nos rodeia seja o que melhor nos convém, mesmo que seja chato, convencional e finito tal como o ano que acaba.

Quanto a mim, Spectator, restam-me sempre as questões que nenhum ano vê aplacadas e que, pelo contrário, com a subida da febre vermelha do consumo na época se vêem agudizadas ao extremo da sua transplantação para esta fatia de página. Vejamos algumas que o espaço é pouco e a vontade é muita:

Estive, há momentos atrás, a ouvir o novo de Katatonia. Absolutamente uma das minhas bandas preferidas! Gostei muito e deixou-me esperançoso e ansioso. Tudo bem até aqui. Mas, na verdade, algo está mal: o disco sai dia 13/3 e a versão que tenho é uma, em definitivo, promocional pois contém vozes que anunciam o disco não porque ele precise de ser anunciado mas sim porque precisa de ser protegido. Quem anda nestas caminhadas sabe que quem recebe estas cópias são ou jornalistas ou pessoas da indústria, esses mesmos e não todos, que “sofrem” com a praga do tribunal/mercado da net e vêem diminuir a sua influência e proveito à velocidade do cabo. Por isso só essas pessoas (infelizmente não dá para acusar ninguém em particular do universo dos milhares que recebem esse promocional) poderiam ter disponibilizado on-line esse registo, fazendo assim razia dos princípios éticos e privilégios demais em ouvir essas e outras obras em primeira-mão, de modo a todos desempenharem a sua função. No topo desta infame montanha existem ainda “utilizadores” que se queixam das vozes que protegem/anunciam o disco. Se calhar custa-lhes muito esperar mais três meses para terem o disco de borla e adiarem para sempre a decisão de o comprar. Talvez para o ano onde tudo será melhor para todos. Onde ficamos então, o que responder? Reflicta-se, pelo menos.


Hypnotize e Rosenrot. Rammstein e System. Dois discos apelidados de metades podres dos outros. Onde está o sentido disto tudo? Que venham as questões então. Num mundo onde a criatividade escasseia por, maioritariamente, razões de tempo fico sem saber por estas e por outras, se, realmente estas bandas que são boas, imaginativas e de uma dimensão importante no espectro da música pesada, criaram ou produziram, se reservaram uma bolsa criativa ou se simplesmente criaram um plano B, juntamente com aquelas pessoas da indústria que se tornaram no que odiavam meros meses atrás. Por outro lado, ao dar atenção e visibilidade a estas meras suposições será que um jornalista informa ou confunde, revela ou atiça? No meu caso pessoal, gosto e muito do Rosenrot, muito mais que do Reise, Reise, esse sim me parece, a mim, a meio caminho de algo que este atingiu com esplendor. A sobremesa melhor que o prato principal?

A inquietação final: porque dar espaço a uma coisa como os Los Los, sem nada para dizer ou ofertar, enquanto bandas a sério lutam por palavras e por atenção. Sou aberto a toda a música e a todo o Metal. De um gosto mais, de outro bem menos mas se há algo que respeito é a dor e o sonho de todos. E isso é a sério. Os Brujeria, por exemplo, são uma brincadeira séria. É música boa e extrema e raivosa. Não são uma cagadela de um pássaro sem piada.

E assim vai o nosso mundo cheio de inquietações. E assim vou eu direitinho ao ano 2006. E assim vão os meus cumprimentos sinceros a todos vós, questionadores como eu. Como dizem os Ingleses: food for thought. Nestes tempos de empaturramento, não nos esqueçamos de alimentar o nosso pensamento também.

Heavy New Year. Fuck X-mas!

XXXV

Metalmania

Afigura-se-me sempre como um recurso duvidoso usar o nome de Moonspell para iniciar a minha tempestade mensal nestas belas páginas, sempre de parabéns por não só se aguentarem como principalmente se superarem nessa sobrevivência, que já é para todos nós, todos os meses, uma vivência plena, não nos deixando órfãos das suas palavras, notícias, entrevistas, desacordos, polémicas e intenções. Se alguma vez tive dúvidas de que a Loud! fosse acabar neste ou naquele mês, atropelada violentamente por este ou aquele problema, esses receios estão, por ora, profundamente adormecidos. E cabe-nos a nós todos velar pela profundidade desse sono. Se a Loud! acabasse, teríamos que ler outra vez as revistas espanholas, cedendo mais ainda nos limites decentes da nossa independência cultural?

Continuo antes de regressar: a Loud! está hoje ao nível da melhores publicações do género. Afirmo-o com a legitimidade do armário do nosso estúdio cheio de exemplos para comparar e confirmar. Apresenta ainda vantagens: uma certa independência em relação à indústria musical; e a absoluta dependência da comunidade metálica em Portugal, que, sem ela, ficaria ainda mais pobre e descaracterizada. Em Portugal tenho uma política: só me associar ao que respira mais fundo e vê mais longe e os meus mais de 50 artigos (4 anos de colaboração), dizem tudo.

Mas, falava eu de de Moonspell…Vamos agora começar a tocar outra vez já no contexto de novo disco, começando, pelo Leste da Europa. Mais exactamente em Budapeste no dia 2 de Março. Depois dessa data vamos, mais uma vez, ser parte do cartaz do festival Metalmania em Katowice na Polónia, que este ano comemora vigésima edição. A primeira vez que lá tocámos foi em 1995 e desde então temos sido presença constante e (muito) requisitada. Não foi por mero acaso que lá gravámos o nosso DVD. Tudo isto é óptimo, fulgurante e especial para nós. Talvez constitua até motivo de orgulho para os meus colegas aqui na revista, para alguns dos nossos fans, e, claro está, motivo também de total desconhecimento para quem e para o que ultrapassa as fronteiras do nosso, muito nosso, nicho.

Do outro lado das coisas (onde convém sempre ir) também não deixa de constituir motivo de amarga tristeza. Porquê? Porque cá onde moramos, onde compramos a nossa música, onde descobrimos as nossas alegrias e desilusões, onde nos digladiamos em guerras, pazes, ignorâncias e iluminações, cá em Portugal, com todas as letras, não há nada disto.

Analisemos o que temos: festivais espontâneos onde quase ninguém aparece ou se junta para aparecer; o esforço titânico do António Freitas em tirar o metal do eixo Porto-Coimbra-Lisboa-dia único em festivais com o Festival Hipertensão; a sobrevivência muito local mas honrosa de Mangualde e Barroselas; e pouco mais digno de registo, que me perdoem os esquecidos e os pontuais (Ermal, Tejo). Distribuídas as culpas por todos: frio, preço, fraca adesão, cerveja aguada, falta de militância, pouca ambição dos promotores (muitas vezes impedidos e impeditivos pela febre do lucro versus a continuidade); pouco resta. Resta a realidade. E a realidade é de que nenhum promotor percebe a franca urgência de fazer um festival de qualidade em Portugal que contemple só e exclusivamente o Metal. Do bichoso último Ermal à esquizofrenia pura de ver pessoal com t-shirts de Metal a deambularem perdidos nos dias seguintes ao som de Kaiser Chiefs ou Joe Cocker; ao sucesso sempre subestimado dos dias de Metal com direitinho a palmadinha no ombro de finalmente a bilheteira ter dado para pagar o investimento, esta é a nossa, dura, realidade. Acrescida da falta de salas em Lisboa, Coimbra, Faro, ou inflacionada pela absoluta batalha para se conseguir uma sala onde elas existem substanciada no medo dos proprietários que uma invasão medieval de cabelos compridos lhes entre porta dentro; ou ainda(permitam-me!) a utilização de salas que não respeitam as bandas (a sua dor e sonho=dignidade/Cancer numa cozinha?), tudo se apresenta um pouco negro.

Depois há o exemplo dos Moonspell que me desculpem não é exemplo para ninguém, são sim a excepção na forma de fazer e encarar as coisas. Às nossas exigências e perguntas de porque não escolheram uma banda de Metal para abrir este ou aquele concerto/festival, sobrepõem-se os compadrios abafados pelos assobios sinceros do público. As nossas “conquistas” são mais objecto de contemplação do que partilha e de ensinamento. Os nossos concertos no Coliseu, Hard Club e Pavilhão Universitário de Coimbra escassos porque anuais e insuficientes para todas as sensibilidades diferentes dentro do Metal.

Sensibilidades essas que encheriam com certeza um festival de três dias só de Metal, dos Korn aos Mayhem, dos Opeth aos Neurosis, sim como se faz em todos os sítios do mundo, dando as tardes e os comités de boas vindas às bandas locais que poderiam, com estas experiências, deixar de o ser, fidelizando público, curiosos, cervejeiras, e o que mais for preciso para criar a sempre muito adiada metalmania em Portugal. Temos tudo: o clima, a vontade, os sítios, os metálicos sérios, os trendies, a fome das bandas em tocarem e aprenderem, a Loud!, o Freitas, os radialistas locais e as webzines. Também temos problemas, claro, mas quem ficaria em casa a sacar discos quando poderia passear e libertar o seu sangue no seu justo habitat?

Talvez este artigo seja um grito no deserto de nós mesmos. Talvez não seja o suficiente para nos desentorpecer. Mas um facto é que o Metal não se fez nem se faz em frente a um ecrã mas num palco. E é disso que precisamos mais. No filme 24 hour party people há uma cena em que o promotor local diz para o dono da editora dos Joy Division: “devias marcar bandas de metal. Eles é que bebem a sério.” Pode até ser mas pegado a esse fígado, vem um grande coração.

Ps: com tantos músicos mandatários nesta nova corrida ao poder/Presidenciais é incrível que nenhum deles, por uma vez, tenha tentado trazer os problemas da música para o campo de discussão (IVA,etc.). O “nosso” Presidente, pelo menos, deveria ser um pólo dinamizador de cultura. Não basta condecorar bandas. Enfim, poleiros para pássaros embalsamados.

XXXVI

Casamentos combinados

Afigura-se como muito provável que estejamos todos, em consciência ou fora dela, a encetarmos um regresso à uma espécie de Idade Média, quando outros valores que a liberdade de pensamento imperavam. Valores que assentavam na tradição e na retórica, ou arte de argumentar, cujo fio condutor levava, em regra geral, sempre à superficialidade aparente ou ao sufoco do dogma repetido vezes sem conta até se tornar doutrina. Tal caminho e escolha possível frustrava bastas vezes a verdade sobre as coisas, tomando, atenção, a verdade aqui não como a irredutibilidade de um facto provado cientificamente; nem como a convicção só, egoisticamente, nossa, de cidadão único no nosso mundo.

Um famoso costume dessa época que se perpetuou quase até aos dias de hoje, foi o casamento combinado, o casamento sem amor. União que era decidida por factores contextuais que se afastavam, o mais possível, do ideal de partilha de uma vida, e da sensualidade da partilha de um corpo. O noivo, ou noiva, apresentava-se, indirectamente, encoberto pela casta, pelo dote, pelo nome, pelo historial, enfim, por razões periféricas ao seu ser, entregue, na maioria das vezes, ao sacrifício absoluto do desconforto eterno ao lado de quem lhe fora imposto.

Esta visão, admite-se, romanceada ao absurdo, encontra, todavia, paralelismos perigosos na forma como hoje em dia se ouve música de uma forma geral, e, no particular, se alastra à forma como hoje em dia se aprecia o Metal, que muitos, eu incluído, julgavam vivendo ainda numa torre inexpugnável, alheio ao mundo, bem certo, mas puro de alguma máculas desse mesmo mundo.

É melhor que me explique: retirei o conteúdo suficiente para arriscar esta apologia do amor à música da experiência repetida de ler entrevistas com bandas, ou sendo eu protagonista das mesmas; das visitas anónimas a fóruns, em especial Portugueses, confesso (afinal é aqui que estamos, livres e presos); entre outras caminhadas às cegas ou às claras. O que recolhi deixou-me um pouco abalado e deu-me que pensar: para fora e para dentro, pois nunca, mas nunca devemos pensar que estamos fora dos assuntos e das problemáticas só porque observando, escrevemos sobre elas. É esta, aliás, a regra de ouro de um observador ou espectador: não se pensar melhor e, sobretudo, não se pensar diferente para melhor.

Começo por mim então: quando entrego um artigo à Loud! faço-o sempre com um ligeiro tremor, isto é, pensando nas consequências ou não que ele terá, se me expliquei bem, com interesse e responsabilidade e se saberei, no futuro, defender-me ou render-me às evidências. Isto é para mim essencial em tudo quanto faço. Outra preocupação é a de que se não estarei eu próprio a falar em demasiado do acessório, deixando o essencial à espera de ocupar o seu lugar devido e prioritário sobre tudo o resto. Enfim, se não combinei eu alguns casamentos, namoricos ou paixonetas fugazes. Abrindo a pasta de todos os meus artigos o que fica na memória do meu contentamento são artigos muito mais apaixonados (sobre o Quorthon, sobre os Moonspell na América) do que propriamente os incisivos e mais ensaístas como O balde de caranguejos ou, numa versão que me contentou, As grandes superfícies. But enough about me.

Neste jogo de influências, poder, resistência e obediência quase cega aos dogmas, há muito em que se pensar e quando verifico na minha colheita que o espaço útil de conversação dado ao essencial é extremamente reduzido, chegando rapidamente à necessidade de escrever um artigo destes.

O que existe, em maioria, nos fóruns virtuais? Ajuste de contas, combinações, intolerâncias, teorias da batata, dogmas e teimosias, dicas sobre como chegar primeiro ao fruto já nada proibido do download ilegal e imoral quando não implica a compra final do que afinal passou, com algum mérito, ao primeiro e mais duro plebiscito actual : o de cada um ser juiz agora, ou quando um se torna o pai severo que quer que a sua semente (gosto, dinheiro) tenha retorno de uma forma bem menos banal do que a do gosto simples.

As perguntas nas entrevistas (ver In Flames na edição passada) andam sempre pelas margens sem nunca ultrapassar as pontes lançadas, e, se os jornalistas têm o benefício da dúvida do dever de informar, o grande ou pequeno público, segue-lhe os passos periféricos, elaborando, mentalmente, uma lista de características a preencher antes do contrato da compra (antecedido do test drive virtual): Que editora? Como vai ser? Mais pesado? Menos? Quanto? Quem produziu? Porquê? Para quê?.

Regressámos então a um clima proto-medieval em que pouca gente gosta de ser surpreendida, de se apaixonar, de deixar o interesse de parte, de exercer liberdade sim, mas, valha-nos Kant!, com responsabilidade. A velocidade e a voracidade da nossa curiosidade morde-nos já os calcanhares e não nos apercebemos de que quando a data do casamento for marcada já nada teremos dizer às pessoas, às coisas e aos sons com que escolhemos partilhar a nossa vida. E, eles, provavelmente, também não.

XXXVII

When the music is over*


Apesar de os três últimos artigos seguirem uma sequência algo apertada e previsível, existem, hoje em dia tendências e persistências (de factos e sentimentos) que justificarão esta trilogia não anunciada, mas que me ocupará hoje o espírito e as palavras.

Provavelmente o nome John Kennedy , pouco dirá aos nossos leitores ou, por outro lado, remeterá para um imaginário social Norte-Americano que não vem aqui ao caso (deixemos isso para outras publicações/sensibilidades). Numa apresentação muito curta, este senhor é o presidente e administrador executivo da IFPI, a federação que representa a indústria fonográfica em todo o mundo e, que, pretende exercer os seus direitos (cedidos pelos artistas em contrato) ao processar judicialmente utilizadores que fazem, partilham e cedem ficheiros de música ilegalmente.

Muita tinta politicamente correcta correu e muita voz individual contra-sistema se fez ouvir, passando por cima, como em tudo nesta guerra virtual de perdedores, dos direitos e dos deveres de quem ouve, faz e vive a música, estados hoje em dia condenados à mais pura das extinções, sem meias palavras ou falsas esperanças.

Facto: as pessoas só contam a parte da história que lhes convém. E, perante a refutação ou desmontar pleno das suas versões, acrescentam novos capítulos à história que circulará sempre à volta de um umbigo voraz que está a comer tudo quanto de belo existia na música: a sedução, a surpresa, o gosto e o esforço.

Nessa parcialidade englobam-se opiniões atestadas de que fazer só um download é legal, de que as editoras já ganharam muito dinheiro e que é agora altura de serem castigadas, de que já pagam impostos pelo uso da net e pela compra dos CD-R, enfim ouve-se e prova-se de tudo, num turbilhão de informações e convicções que abala o mais motivado dos músicos.

Esclarecendo, se muitas destas opiniões se reportam a verdades “quase verdadeiras”, outras são absurdas e imorais. O primeiro download não autorizado e não pago é crime; a partilha de ficheiros (mesmo com boas/ingénuas intenções) também o é e desrespeita o direito de autor, consagrado na Lei e na consciência dos povos ao lado dos direitos da Humanidade, privilegiando assim a imaginação, a criatividade sem as quais a vida seria uma insuportável rotina de comportamentos formatados e ambições primitivas.

Se é um facto que as editoras promoveram durante muito tempo uma espécie de nova escravatura com contratos baseados na premissa de que era um privilégio para o autor ser editado e que o seu amor pela música o alimentaria (a todos os níveis), está agora a perder-se uma boa oportunidade de diálogo construtivo porque o valor da vingança fala mais alto, a sede do grátis tudo justifica para lixar aqueles cinzentos executivos e mesmo que a música se extinga irá valer a pena, porque o poder inebria tudo e todos. Na zona do fogo cruzado o músico sofre, ferido por todos os lados, enquanto tenta equilibrar nas mãos nuas o fogo de fazer, o prazer de comunicar e a força do sobreviver.

Porque, repito, as pessoas só contam da história o que querem. Porque se quiserem ver uma banda na sua cidade, esta só virá se as vendas o justificarem (os downloads não contam), e essa desculpa de haver mais gente nos concertos e de comprarem merchandise estará exausta em pouco tempo, pois depende da mobilidade da banda o fazer chegar tal material da sensação às pessoas e também a esse nível sofrem duros golpes da contrafacção tolerada e pouco combatida por Estados inábeis, preocupados mais com o conforto das cadeiras (que pouco usam) da Assembleia Parlamentar.

Neste aspecto, utilizadores e executivos confundem-se e tornam-se não naquela essência e garante de possibilidade da sobrevivência de um músico mas sim no seu executor. O problema é grande porque ambos se sentem a praticar um direito e enquanto não adquirirem, à força da Lei e não da formação, infelizmente, hábitos diferentes, a sangria do criativo nunca estacará. Afinal, leia-se com ironia, o músico poderá sempre comer amor, lavar-se com a poesia das palavras, e habitar nos sonhos destruídos. Entretanto, a vingança continua alheia ao que vai devorando.

Por isso a entrevista de John Kennedy é mais que uma lição de clareza: é um entendimento cristalino do que se passa, e trespassa, sem rodeios, o coração de uma relação que se tornava hipócrita entre feitores, editores e consumidores. Comparar o preço de um download de um tema a uma garrafa de Coca-Cola pode não ser o recurso mais romântico mas alerta para a dimensão do problema, especialmente na sua pequenez, e que me faz, em definitivo, deixar de tentar arranjar, eu próprio, desculpas para as pessoas que fazem downloads ilegais e que culminam o seu acto com a vileza de não comprarem o disco, ultimando a vingança contra Estado (impostos), editoras (preços) e músicos (que é isso de viver da música, hã? querias…).

E tudo isto cria um sistema ainda mais cruel: o de fazer o disco para o tribunal da net, onde todos se queixam de tudo (até de haver edições especiais com temas bónus!). Talvez o CD perfeito que apetece lançar seja um CD virgem completamente em branco, com um encarte também ele branco de modo a que os iluminados preencham com aquilo que ferve nos seus corações feridos pelos desvios criativos das bandas, pelos risos amarelos dos editores, pelo dinheiro que já não vão gastar nas experiência para toda a vida de uma cerveja e um hambúrguer, em detrimento de algo que lhes pode conferir luz e vida eterna. Uma espécie de livrinho de reclamações.

Em resumo a sedução está morta. Estes são os tempos do investimento. Ir comprar um CD já não é um acto simples de paixão. É um acto pensado, questionado até ao último cêntimo, mais inspirado pela cedência e por um sentimento quase caridoso, do que pela vontade de se completar ou de se desiludir, afinal as duas únicas sensações que a música nos pode ensinar e ambas essenciais à nossa humanidade. Tenho pena. Mas ainda assim continuarei a sentir-me especial enquanto me rodeio de quem também é especial.

* Jim Morrison (The Doors)

XXXVIII

15 Anos de sombra
15 Minutos de fama



Nasci em 1974. Não vivi, com confesso alívio, as amarguras da ditadura que, como qualquer regime fascista, se orientava para a aniquilação da individualidade e para a promoção de elites enganosas, podres na raiz e no fruto. Não vivi essas, vivo outras. Na democracia jovem que temos, tentem ir a um banco, orgulhosos da vossa independência que vos permite assinarem um contrato de escravatura para terem uma simples casa. Afinal todos precisamos de uma. Sentem-se e escutem as perguntas: é licenciado? Se sim tem vantagens e brandimos o epíteto de Dr., Drª, nos cartões. Os seus pais responsabilizam-se? Não interessa se trabalha, se é válido, perpetua-se mas é a dependência agonizante dos que nos geraram. Nasci em 1974 mas muitas vezes sinto que sou transportado muito para além dessa data. O fantasma desses tempos não é um fantasma porque possui inegável realidade.

Em 1989 meti-me numa banda. Ao principio nos meus rabiscos desajeitados nos tampos das carteiras das secundárias, nas letras nos cadernos (acerca de Cristo escrevi, na altura, failed as a Man, ignored as a God), nada más para a altura. Um ano depois, sensivelmente, conheci o Quorthon Seth dos Bathory e comecei a trabalhar no sonho, passo a passo, recuo a recuo, avanço a avanço, dor a dor, sorriso a sorriso.

Em 1992 entrei pela primeira vez num estúdio. Fomos maltratados, despachados. Ninguém nos levou a sério, ampliando, assim, o nosso medo, timidez e ignorância a níveis que fariam outros (tantos o fizeram!) voltar para trás, enfiarem-se debaixo das mesas e meter alma, viola e talento no saco bem fundo do esquecimento.

Em 1994, 1993 findava, aliás, voltámos ao estúdio para gravar o nosso primeiro disco (ou CD como optámos na altura) e por outra vez fomos alvo de suspeitas, voltámos para casa no primeiro dia apesar da nossa editora ter depositado o dinheiro. Interromperam as nossas gravações para gravarem outra banda. Voltámos, fomos embora, regressámos, chegámos ao fim depois de uma noite de gritos e fundas respirações. Tínhamos medo, éramos tímidos, por vezes julgávamos que estávamos a fazer mal ao conceito da música em Portugal, ao tudo certinho, sem imaginação, às pessoas que tocavam muito mas que nunca mudaram uma vida. Tudo bem lá acabámos as coisas.

Em 1993 a companhia de duplicação que reproduzia as nossas maquetas imprimiu um pentagrama ao contrário (isto é, não invertido, na nossa geografia oculta) porque tanto fazia. Ao mesmo tempo, ou quase, a nossa Junta de Freguesia dava-nos três ordens de despejo porque sim, porque éramos a serralharia, o barulho na noite inexistente de um subúrbio, dando todo o seu apoio, as melhores horas, as melhores salas a um grupo de baile, no qual todos eram feios e tocavam mal. Passados uns anos “ganhámos” uma votação do público para abrir para os Paradise Lost, foi outra banda fazê-lo. Em casa lutávamos contra o boicote ao cabelo, às horas perdidas, aos objectivos esfumados.

Em 1995 gravámos um disco que se tornaria num clássico. Um disco com um vocalista constipado. Um disco que o nosso produtor e grande amigo não assinou porque achava que não o representava, que éramos doidos, que não sabíamos tocar. Hoje, em todo o mundo, bandas tentam copiar essa profana ignorância e loucura. Nos anos que correram, perdemos amigos, muito dinheiro, namoradas, relações, funerais, aniversários, batemos no fundo, rastejámos até ao topo, encheram-se bocas para falar mal de nós que nunca mais conseguimos silenciar. Perpetuaram-se rumores. As dores do crescimento. Tornando-nos fortes.

Em todos os anos tocamos festivais em posições injustas. Vemos as pessoas a abandonarem concertos depois de nós tocarmos. Na minha testa já se apagaram cigarros, pelos meus cabelos garrafas voaram, na minha cara camisolas com terra, insultos de rockabillies, olhos fechados, nós nas cordas vocais, dores musculares, comprimidos de magnésio. Corremos o mundo, ele correu dentro de nós, fizemos obra, tocámos corações, por nós, pelos outros, por ninguém.

No dia 5 de Maio de 2006 chegámos ao primeiro lugar do Top Nacional de vendas e nem consegui sorrir. Estava cansado demais pelos 15 anos de sombra. Mas dentro de mim havia uma festa onde nós tocávamos sem parar e sem pensar, eu escrevia sem cessar e sem me preocupar, as pessoas entregavam-se-nos sem teorizar, seduzidas. Havia também muitas sombras sentadas aos cantos na minha festa que coçavam as cabeças envelhecidas, a pensar: “o que correu mal?”.

Eu levantei-me de onde estava e pus-me a percorrer todas as pessoas e a cumprimentá-las, como faço sempre, num agradecimento sincero, tanto às que me viravam as costas como às que me abraçavam com a sua vida.

Tudo continua. E nós também.

XXXIX

Dose dupla

O atrofio do calor instala-se, para gáudio das cigarras veraneantes e para desespero de quem formiga sempre nos pensamentos e nas palavras. Recuso, teimosamente, entregar-me à sedução fácil da cervejinha, caracol e beira-mar, escudado, sim, no flamejante interior do país, nas possíveis sestas de portadas fechadas, factor 60 na pele, e no muito silêncio à espera que o beijo quente de vento e sol passe por cima de mim, que me desaperceba e me poupe à sua crueldade. Na sequência desta resistência: dose dupla, porque os assuntos são muitos e o tempo e as palavras já não conseguem competir com o aperto deste rectângulo estilizado.

Música no Coração

Depois da esquisitice de um dia tirado a ferros pelas bandas e pelo público, engarrafado em todas as filas possíveis, principalmente nas da sobranceria e snobismo com que ainda é, infelizmente, bovinamente tratado por quem “organiza” festivais em Portugal (esperamos sempre, como bons Portugueses, progressos para o ano), desloquei-me ao desconforto do Parque Tejo para sentir os Tool, esse magma de visualidade e inteligência. A minha total atenção dividiu-se entre tudo aquilo que se transmitia do longínquo palco e que sabia ter de confirmar em casa, matutando e saboreando os dez mil dias de dor e esperança de James Maynard; e entre uma rapariga de óculos de aros pretos (presumo) que, mesmo à minha frente, dançava, sentia, se deixava ir e regressar, recitando (para minha inveja e admiração) todas as palavras vindas do altar, com uma devoção que ultrapassa a compreensão de quem está, vezes demais, do lado de lá. A essa estranha em comunhão, um obrigado de quem observa e sonha com reacções idênticas onde a expressão música no coração faça verdadeiro sentido. Para continuar no apesar de tudo.

Lordi of the rings

Parece que a comunidade metálica cuja união é sempre uma letargia pior que a que nos traz o inferno calorífero do Verão Luso, levou uma picada no rabo pontiagudo e se pôs a televotar, para se encher de orgulho pela vitória de uma banda mediana nas canções e bizarra na linhagem dos “pioneiros” GWAR num festival que para, todos nós, devia representar a mediocridade de espírito e o ridículo do pan-europeísmo forçado nas notas e construções musicais. Quanto a mim já o disse e o repito: eu, pelo menos, não quero ter nada a ver, nem por sombras, ser identificado com aquela bizarria quando disser que gosto, vivo e faço Heavy Metal. A Finlândia, país que admiro, respeito e invejo pela sua talentosa e unida cena musical, tem já muitos motivos de orgulho desde o reinado dos Amorphis nos anos 90 ao principado dos HIM, Nightwish ou Children of Bodom nos dias que correm. Não precisa deste acidente de percurso. Tenho a certeza de que é isso que sente e pensa quem trabalha todos os dias pela credibilização de um estilo como ele é, e não pela cultura de choque que não é para ser levada a sério. Rio perante as pessoas que escreveram ou disseram que agora sim, é que o Heavy vai ser levado a sério porque, desculpem-me, não posso mesmo fazer outra coisa. Tantos anos de luta e de rebelião para chegarmos à seriedade nos outros através de uma banda humorística num festival caricato? Se for tudo para ser levado como uma brincadeira contem comigo no limite de que eu sei que levo tudo muito a sério mas que me sobra espaço para uma gargalhada sónica (Bad news, Spinal Tap, Ten Masked Men, por exemplo). Se vierem com histórias de credibilidade, dispenso, passo e ignoro.
A vitória dos Lordi que pode ser muito gira, curiosa e engraçada não vem mudar nada, talvez só aprofundar ainda mais o fosso de quem nos vê como uns monstros sanguinários (e ainda por cima de uma maneira estúpida).

Here’s my two cents. Para o mês que vem mais trocados, mais calor, mais inquietação, mais vida.

XL

Memórias de Verão - parte 1

Não. Não vou ceder este nome horrível a nenhuma novela “estupidificadora” do povo,
nem tão pouco será este título mera falta de imaginação. Há um lado bom nestas palavras simples e quase piegas. Passo a explicar. O Verão e as suas memórias são sinónimos, quase sempre, de algo fugidio, efémero: sal na pele, primeiro beijo, paixão juvenil até ao regresso às aulas ou trabalhos, podermos ser outras pessoas, isolamento estival, etc. Tudo coisas que não pertencem à nossa normalidade e que, como tal, fogem de nós assim que ancoramos outra vez. Esse é um sentimento de facto, uma verdade.

Tempos há, no entanto, em que os acontecimentos veraneantes se instalam com requintes de definitivo. Poucos decerto mas significativos porém. É desses momentos que esta pequena série de artigos pretende falar.

Igualdade, humildade, fascínio absoluto.

Estou na costa de Atenas (Grécia) a fazer tempo entre festivais. Hospedados num semi-isolamento com mar pela frente e complexo turístico pelas costas, passámos toda a tarde a sermos Verão, na piscina a beber cappucinos de 4€, a jogar à bola com um reforço grego contratado aos Rotting Christ. Recolho ao quarto para depositar na memória do meu computador coisas mais sérias. Por detrás de assistências para golo, calores, cafés e poesia obscura, corre um fiozinho de ansiedade: afinal, amanhã tocamos com os Celtic Frost e pela primeira vez os vamos ver ao vivo e, talvez, conhecê-los.

Depois do banho hesito entre o conforto de uma roupa mais desportiva (adequada plenamente ao contexto) ou o desejável uniforme negro, com anéis invertidos e elegância satânica. O fio da ansiedade corre mais corpulento e decide a indumentária. Momentos depois desço de negro vestido, coração na expectativa de alguma coisa ou de nada. Entro no terraço e mesmo antes de ver sinto: entre muitas pessoas sentadas numa normal mesa com caras e comportamentos normais, duas pessoas que mudaram a minha vida. Thomas Gabriel Warrior e Martin Eric Ain. Controlo a minha ansiedade e atiro num misto de timidez e respeito umas boas-noites ao de longe. Afinal não sei entrar a matar e apesar de tudo pelo que já passei ainda fico completamente desorientado na presença de certas energias. Acima de tudo não quero atrapalhar, incomodar, fazer figuras, não sei como são as pessoas, só conheço a obra e a energia, se estão cansados, sem vontade de serem o que são ou o que fazem esta noite. Stop!

Sento-me à coxia da mesa (sempre, por causa das pernas) e passa-se um segundo talvez até que reparo que o Tom G. Warrior vem na minha/nossa direcção. Levanto-me eu, o Mike e o Ricardo como molas. Ele apresenta-se e começa a dizer palavras que me parecem um sonho muito maior do que aquele que eu alguma vez sonhei. Tento interrompê-lo incrédulo das suas palavras, ele manda-me calar, e continua a dizer-me/nos as palavras mais inacreditáveis sobre aquilo que fazemos, sobre aquilo que somos, e como ele está atento a tudo, com igualdade, humildade, fascínio absoluto. Acordo do torpor e balbucio as minhas primeiras respostas. Estabelece-se um clima de grande elegância e respeito mútuo. Mas eu não posso ficar por ali. Janto sem interesse e corro ao quarto para buscar a minha colecção de Hellhammer e Celtic, a biografia em livro. Os vinis, preciosos, ficaram em casa, tímidos também. Desço e sento-me ao pé de ídolos que me relembram a toda a hora a nossa igualdade, frustrando tudo aquilo que me preparei para dizer ao longo todos estes anos de sonho.

As surpresas começam: ofereço um disco Memorial ao Tom (sim ele disse-me para o tratar assim) e tenho outro para o Martin. O Tom aceita, o Martin não: já o comprou. D.Aires pergunta pela existência de uma t-shirt de Frost qualquer que ele tentou comprar mas nunca conseguiu. Martin Eric Ain desaparece por momentos, sobe ao quarto e volta com duas t-shirts do Monotheist. Uma para mim e outra para o Aires. A noite segue com conversas entre iguais na humanidade e muitas vezes no pensamento.

Dia seguinte: levo mais de 20 minutos de fotos e autógrafos para me conseguir chegar à frente da mesa de mistura para ver Celtic Frost ao vivo. Vi e passados quase 20 anos em que os ouvi pela primeira vez, outros quinze desde que os entendi melhor e menos anos ainda em que os incorporei numa visão pessoal e depois universal, aprendo outra vez com eles. Fascínio absoluto.

A conversa continua depois do concerto. Eu já desci à terra prometida de Tom e Martin (que nos dão os parabéns pelo nosso concerto dessa tarde que eu tinha esquecido por completo depois do deles, uma verdadeira missa negra) e falo, falo, falo, ouço, ouço, ouço. Trocamos contactos e abraços no fim.

Duas últimas coisas: sem teorizar muito, prometo
Adoro, finalmente, o Monotheist. Pelo seu conteúdo musical, espiritual e a pela sua afirmação de uma banda positiva que regressou como nenhuma outra o fez. Pela música, pela visão, pelo fogo que arde lá dentro.
O Tom G.Warrior e o Martin Ain não só sabem da existência de Moonspell como apreciam genuinamente o nosso trabalho. E eu que por vezes perdi tempo a falar de julgamentos, juízes virtuais, e bagatelas. Desculpem-me. Precisei do Verão para aprender outra vez o significado absoluto da igualdade, da humildade e do fascínio absoluto de trocar ecos em desertos vazios. “É para continuar”-disse-me o Tom. Cá estaremos ao vosso lado.

XLI

Yoko Ono


Era inevitável. As contingências de tempo e de espaço neste trabalho das revistas levam-nos sempre a antecipações ou ressurreições de assuntos. O que nos coloca perante o velho dilema entre o remexer naquilo que é o habitat natural das moscas e seus senhores e o bem mais positivo facto de consagrar actualidade a um assunto já comentado. Nos tempos em que correm não é mesmo nada má ideia a ressurreição.

Estava eu a preocupar-me com a perda de sentido dos meus Verões, pondo as minhas lamentações por escrito, como deve ser sempre feito, e a enviá-las para os subterrâneos da Loud! através daquele éter, sinal, onda, rede, ou coisa que o valha, da qual depende a nossa vida quando me deparo com um acontecimento que, senão para todos, pelo menos para mim irá mudar a face do Metal como (sempre) a conhecemos porque finalmente se revela perante todos, no tempo real das notícias do nosso rápido mundo, a caveira podre, cheia de vermes e de pus em que se tornou o Metal hoje em dia, em especial no outro lado do Atlântico onde o som eterno deixou de ser um impopular anátema para se elevar ao estatuto de máquina de fazer dólares à custa da pureza, ambição e sonhos amolgados de todos nós, iguais, pelo menos em alguma coisa, em todo o universo do Metal.

Felizmente e com o domínio do tempo que o caracteriza o nosso aquilino director falou do assunto no tom de quem vê as coisas como elas são, sem alarmismos e com a certeza de que as coisas andam, seja de que maneira for porque se nem tudo se resume aos intervenientes, devo dizer que estamos a falar de dois nomes para os quais toda a gente olhou, pelo menos uma vez na vida, e sentiu que podia confiar: Iron Maiden e Ozzy Osbourne.

Estou, pessoalmente e spectatormente, farto do princípio do inocente, inocente, inocente, inocente, inocente até prova muito, muito, muito, muito, muito, mas mesmo muito REAL em contrário (e mesmo assim) que rege a nossa justiça legal e aquela nossa outra com que nos colocamos perante as coisas. No nosso país basta olhar desatentamente para os autarcas, políticos e dirigentes de futebol para perceber que essa lei não escrita é a que nos rege. Por isso nem me interessa se não estive lá ao pé dos lançadores de ovos, dos cortadores de som, dos palradores das vozes que saíam em desrespeito do PA, para sentir a revolta e angústia da mesma forma do que se tivesse pago a pequena fortuna para ver o circo Osbourne.

Já me tinha revoltado até à náusea “a batalha pelo Ozzfest” transmitida na MTV onde “miúdos sonhadores” eram expostos ao ridículo pelas suas fraquezas e forças, obrigados a uma abstinência Cristã dos desvios do Rock’n’roll (que pior hipocrisia vinda de quem vem?); obrigados a terem de obedecer a bandas que clonaram os clones dos clones mas cujas editoras, famílias e existências se colectaram para pagando os fazer “apreciados” e “queridos” pela carneirada que, felizmente, começa nestas bandas e atinge a verdade depois ou simplesmente desiste e volta ao conforto do rebuçado da Pop americana. Como músico corta-me o coração ver o brilho genuíno embargado pela falsidade das acções, dos comportamentos perante a ditadura da observação total, da contribuição do sangue da juventude para uma ganância de cães, de dejectos, de filhos que se fossem meus já estariam na linha, de uma vida e de uma carreira uma vez salva mas tantas, tantas outras estragadas pelo acompanhamento da decadência e da escravatura branca do homem que fez o No rest for the Wicked, que assombrou com os Sabbath e que teve bem mais sorte com todos os seus filhos e bastardos musicais do que seria de esperar se alguém chegasse à Terra do Metal hoje em dia e lhe mostrássemos, sem medos, o triste espectáculo da sua vida em comparação com o da sua Arte.

O acto final foi o cuspir em Maiden, com ovos, água e palavras e se pelos palcos do Ozzfest passaram grandes bandas e grandes momentos é bom que, quem puder, só recorde esses e que espere a que este acto final se siga o respectivo funeral da mentalidade que reina sobre este evento outrora um sonho que se tornado agora um símbolo de vilania e pouca vergonha. (e já agora que se enterrem também boa parte das bandas que lá calharam a tocar - salvem-se as boas!)

O Heavy Metal é um estilo que tende a criar os seus próprios mitos e que mesmo quando eles provêm do exterior se apropria deles e fá-los seus. Faltava-nos uma Yoko Ono. Pois bem agora já temos uma nossa.


Long live Ozzy, up the Irons, keep it true, keep it simple, keep it pure.

Temos que nos aguentar,

XLII

Memórias de Verão (parte II)

Ainda faz todo o sentido este título. Por isso, e sem contemplações, vou mantê-lo, juntamente com a promessa de continuar esta narrativa veraneante, vivida aos bocados e por eles tornada fascinante realidade.

O camelo pelo buraco de uma agulha:

Chego ao aeroporto de Casablanca, Marrocos, mesmo a tempo de um Verão que explode a camisa preta e faz suar os dedos por baixo dos anéis, permitindo a memória escrita deste Verão. Os passos que me fazem entrar nesta realidade denunciam, a quem quiser estar atento, que nunca pensei fazer esta viagem, pelo menos não nestes termos, isto é, tocar um festival em África (mesmo que próxima), e, desculpem o prosaico, ultrapassar preconceitos e trazer a nossa música (Metal) a pessoas que a aguardam, pagando preços inimagináveis como terei ocasião de contar.

Metal martyrs:

Passemos à frente, rapidamente, algum do excelente folclore deste país, esperado e inesperado. Mercados a perder de vista, desvio para a esquerda, lado negro à venda: sanguessugas num pote para purgas; abutres secos, abertos e salgados; corujas bebé, cheiros fortes, chá vicioso e açucarado. Um almoço de camelo grelhado (horrivelmente seco e uma péssima experiência me perguntarem), comprado num talho ao ar livre, digno de uma paisagem à Holocausto Canibal. Uma dança à nossa volta fotografada e paga para as revistas. Abelhas em magotes em bolos em que não se tocarão. Palavras confinadas a um artigo não chegariam para descrever a sucessão de momentos como a proibição de não-muçulmanos em entrar na mesquita Hassan II que adentra o mar; o encontro breve com Naybet (ex-jogador do Sporting) para um aceno entre carros. Não chegam mesmo e devem deter-se agora.

O significado deste festival (que reúne vários estilos de músicas e que nas últimas duas edições fechou com bandas de Metal, Kreator e Moonspell) reside numa particularidade que me parece digna de preencher estas linhas de calor, na sua sempre apertada totalidade. Um dos promotores (Nabyl G.) é vocalista de uma banda marroquina de Metal chamada Reborn. Há um par de anos (e os mais avisados recordarão tal acontecimento) as autoridades marroquinas prenderam cerca de 8 a 10 pessoas, pelo simples facto de ouvirem Heavy Metal, algo que lhes pareceu contra a tradição estrita do islamismo, mostrando mais uma vez que enquanto a figura de qualquer deus se impuser à vontade do Homem, o mundo explodirá, filamento a filamento, coração a coração. Estas pessoas passaram 24 dias na prisão, em condições que senão desumanas, pelo menos absurdamente injustas para jovens forçados a trocar a normalidade dos seus confortos pelo sufoco do cárcere.

O importante aqui não é a revolta perante esta situação. Não tanto como a continuidade, pelo menos, já que quando Nabyl e os seus amigos (nunca) anónimos saíram da prisão, resistiram e deram passos em frente. A banda Reborn continuou, dá concertos ao vivo e Nabyl dinamizou-se ao ponto de conseguir incluir Metal na única oportunidade legítima de o trazer ao seu país, para as suas gentes e para, merecidamente, si mesmo. Esta visão impressiona-me e merece todo o meu respeito. Gostaria de evitar lembrar outra vez os nossos problemazinhos e atitudes. Seria macular o espírito desta luta desigual. Retenho essa vontade então.

Para tocarmos em Marrocos (ninguém tem nada a ver com isso mas vamos lá!) recusámos um festival alemão melhor pago e como cabeças de cartaz. O nosso agente ficou furioso, agravando a sua fúria quando teve que lidar com marroquinos negociando cada cêntimo do nosso pagamento. A dedicatória de uma canção no fim do nosso concerto nunca seria o suficiente, por isso aproveitei estas linhas para documentar a inteligência desta coragem. Por mim teria repetido recusas e entrado em mais confusões ainda só para, como fiz, pôr uma cara em cada um destes mártires do Metal e lhes apertar a mão e agradecer o exemplo.

Pode ser que agora quando alguém se sinta discriminado pelos das suas tribos ou de tribos vizinhos, pense que vai sempre conseguir chegar a casa e, pelo menos lá, ser ele próprio, sem prisões, muros, celas e acima de tudo sem a incontornável e activa opressão da sociedade. Para cada prisão, mil liberdades. É nessas que nos devemos todos encontrar.

XLIII

Summer dying fast


Quis a Musa ou a força irresistível do destino que as minhas memórias finais de Verão primassem por uma ausência que muitos entenderão como indesculpável. Em todo o caso apresento a esses e aos outros as minhas desculpas. Façam com elas o que quiserem. O conceito de tempo é algo de muito subjectivo e que homens melhores do que eu tentaram, ao longo dos séculos, explicar e domar, com pouco sucesso mas muito trabalho. Parar, de vez em quando, não será, por norma e necessidade, uma perda de tempo e talvez seja este lapso que nos permita, muitas vezes, acertar o ritmo do nosso coração e ajustá-lo à vida que tanto dele exige. Muitas vezes até o seu sangue.

Deixo-vos então com duas realidade que gostaria, como sempre, de colocar perante a nossa, nesse país que, quando ausente, tanta falta me faz com os defeitos do seu coração mas também com a perfeição da sua alma que nos devia a todos possuir a todos os momentos:

O exemplo finlandês:

Fear of a metal planet

É uma expressão que se tornou comum na boca mentirosa dos nossos políticos e nas linhas sacrossantas e de mentira impossível dos nossos jornais. Olhamos para cima (no sentido absoluto da palavra) e tomamos como exemplo as boas coisas do temperamento e organização do nosso distante vizinho e tentamos imitá-lo, procurando o progresso, através das qualidades dos outros. Acontece que, por cá (ou por lá, infelizmente) a tentativa tem muito que se lhe diga, e nunca é facto consumado a sua acção, pelo contrário, muitas vezes vivemos da intenção e do vocábulo, pobre alimento para quem se nutre tão mal há tantos anos.
Todos sabemos que o Metal na Finlândia é um caso isolado, um study case, um exemplo, uma raridade. Chegar ao aeroporto de Helsínquia e ver miúdos com t-shirts de Lordi (o Metal for kids é procurado avidamente neste país) é raro mas não muito diferente do que vemos por aqui com a pobre criada dos serões da SIC, que, sem a qualidade do ferro forjado, nos invade os neurónios com as suas músicas e medíocres ambições. Primeira prova, nem sei se boa se má, mas, pelo menos, interessante e diferente. Vantagem até (e eu não gosto de Lordi, tenho até medo deles!) para o nosso lado.
Percorrer o país numa série fulminante de concertos é trabalhoso mas (apesar da dimensão pequena desta tour) compensador porque existe compreensão, vontade e acima de tudo naturalidade, aquilo que, forçosamente, seria o patamar último desta luta desnecessária de nos impormos perante algo ou alguém. Chegar a uma comunidade de estudantes que, com poucos meios, se organizam para fazerem um concerto internacional acontecer faz-nos sentir esperançosos e importar, ilegalmente, o exemplo finlandês até às nossas margens para estancar de vez a sangria dos clubes, dos sítios, das oportunidades. Mas quando chego as notícias são outras: o Hard Club fecha, há vítimas e há culpados, há desculpas mas o facto é, desta vez, consumado. Este fecho mereceria um outro artigo que não uma elogia aos coitadinhos mas sim um estudo factual do que aconteceu. Ora, isso, ninguém sabe mas por acaso, a responsável desta comunidade de jovens em Jyvaskyla (sque nome!) visitou uma vez o Hard Club, ficou roída de inveja e cheia de deslumbramento mas, curiosamente, sem perceber porque é que um clubaço daqueles, em pleno Verão, tinha apenas um concerto essa semana, enquanto que eles, nesta cidade de nome estranho, com um punhado de estudantes que cozinharam almôndegas para vinte e tal pessoas, têm, pelo menos quatro concertos por semana, sublinhando a sua auto-suficiência e conseguindo fazer algo pela sua comunidade ao mesmo tempo que se saem bem no negócio.
Nós próprios arriscamos um experimento finlandês, ao alugarmos um clube, e financiarmos/organizarmos todo o concerto com um saldo bem sucedido, especialmente, a nível de ânimo e de independência. Foi em Oulu, pagámos a toda a gente e alimentámos as nossas bandas convidadas e ainda levámos algum para casa.
É nesta óptica de segurança mas de desprendimento que reside a realidade e isso é raro no nosso país que invejável pelos espaços e pelas almas, se perde no medo de si próprio e na ostentação de coisa alguma.

O exemplo americano:

É completamente diferente. Aqui exercita-se o pay to play, isto é, as bandas locais são responsáveis por vender os bilhetes e garantir ao promotor um dinheiro seguro e sem suor. Forma-se assim um clube fechado que despreza quem viaja e investe milhares de muitas coisas, chegando-se muitas vezes ao ridículo de dar tudo a quem abre os concertos, perante o desinteresse geral até dos seus amigos!, e reduzir os alinhamentos das bandas de cartaz, o seu tempo e a disponibilidade das pessoas. O ramalhete é completo por posts num fórum a falar de si mesmos alheios a que para além dos seus narizes existem horizontes que não se coadunam com a pequenez.

Chegámos ao fim. Das desculpas e dos exemplos para reflectirem. Espero que não se escolha o caminho mais fácil na nossa linda terra. É tempo de nos juntarmos aos melhores porque nada temos a menos que eles.

Spectator (Montreal, Canadá)

Ps: o mail loudspectator@gmail.com destina-se a receber feedback a estes artigos e não como mail para troca de correspondência, queria clarificar tal para não ofender ninguém com o meu silêncio/falta de tempo mas nunca com a minha desatenção.

XLIV

Nação monólogo

Não sei bem há quanto tempo estou fora de casa. O tempo tornou-se em algo que não consigo dominar e, com toda a honestidade, parece-me que passaram, ao mesmo tempo, meses profundos e minutos fátuos e vivo pelo menos há cinco semanas nesta confusão entre velocidade sufocante e lentidão de agonias.

Amanhã regresso a Portugal numa maratona de horas dentro do entretenimento a bordo, dentro das garrafas soporíferas de vinho, dentro do sorriso incompleto de uma hospedeira. Regresso à luz da minha cidade e à minha natureza. Muitas coisas se passaram desde que cheguei ao aeroporto de Newark e me enfiei num autocarro prateado para correr os EUA na missão das minhas palavras e da nossa música. Sem tempo ou espaço para as comentar aqui as registo deixando para logo a seguir os porquês: ganhámos um prémio importante; um rapper utilizou o nosso nome numa letra olvidando os efeitos secundários (ou talvez não); perdi o lançamento de um dos melhores livros que já li (no privilégio da antecipação); a morte (esperada mas sentida) de Cesáriny; entre outras coisas que me mereceram mais ou menos atenção. O porquê deste registo, vamos lá, tem a forma de uma amarra pois que é preciso que a bolha que se vive na estrada nunca ganhe pele dura e nos sufoque. É preciso abrir buraquinhos tal como (para) os bichos de seda.

É perigoso generalizar apesar de não podermos fazer outra coisa quando escrevemos e pensamos. O próprio escrever é, filosofia barata, uma espécie de voz sem retorno e cujo eco, contradição barata, nos seduz para continuarmos verso ao nosso infinito privado. Nos EUA as pessoas falam sozinhas. Numa entrevista, por exemplo, os jornalistas falam muito mais que os entrevistados. Ainda bem, poupa-se a voz e o intelecto. Tentem, outro exemplo, contarem uma história ou algo que vos aconteceu (ou, e desaconselha-se, a história da vossa vida). Revelar-se-á uma experiência frustrante. No entanto somos invadidos, sem pedirmos, por histórias, repetições, teorias, acontecimentos, confissões, tudo revestido de uma importância absurda e deslocada. Lembra a letra dos White Stripes: “(…) everybody’s got a story to tell. Don’t wanna hear about it (…)”. Indeed.

Se se quiser juntar a isto, a eterna capacidade de prometer mas de ficar por aí e nada mais, chega-se à conclusão de que este novo mundo é duramente diferente e pelo menos, para mim, algo sufocante na sua pretensão de servir de modelo e de impor, a que custo!, esse modelo a todas as sensibilidades do mundo mais antigo. Por consequência, pode pensar-se que o abismo é largo e talvez inconciliável, mas, don’t get me wrong, como se diz aqui, existem aqui coisas muito boas e tocar para pessoas que tomam o seu tempo, contra contextos outros, para nos ouvirem e seguirem, é ainda uma sensação inigualável, seja na Covilhã ou em Los Angeles. Adicione-se o charme esmagador das oportunidades e o natural encanto das ruas e recantos de Manhattan ou Brooklyn, e será complicado fazer contas no fim.

O espírito é que não deixa essas contas por mãos alheias e esses (os espíritos) por aqui regulam-se por contas bem diferentes. Andar na rua por vezes lembra entrar num palco e por lá andar a remoer angústias e luzes. Toda a gente se comporta como tendo algo a provar por aqui e se o fizer tudo consegue por ali, acolá e ainda mais longe. Eu, correndo o risco do isolamento, não consegui interiorizar tal obsessão e, mesmo que me dê mal com isso, faço como faço sempre: pela comunicação, pela partilha, pela identificação com o meu egoísmo repetido todas as noites. Não mudo por as coisas mudarem à minha volta. Tento encarar isso com a tranquilidade que as pessoas me merecem.

A vida rápida é complicada e eu podia encher páginas de vazios e ocupações-limite, porque a diversidade dos EUA assim me permite e quase obriga. O tempo e o espaço, no entanto, obrigam-me a pensar mais em como as coisas aqui se isolam, como as pessoas se isolam, inebriadas pela suas histórias e vozes. Torna-se impossível não pensar no estado do mundo, de imaginar um gigante dentro de uma sala falando para os seus botões de ouro.

Talvez tudo isto seja só um mês atravessado de dor e dificuldades conquistadas; talvez seja a falta da luz de Lisboa; talvez seja a falta da nossa “lentidão” e “pequenez”. Mas deixo esta terra preocupado, mesmo que saiba que vá voltar em breve às bolhas, traumas e histórias, que nem o Metal resolve ou une. Pois bem, salve-se quem puder e sobreviva quem conseguir. Para já o melhor é parar por uns tempos e acabar a minha Sagres, provavelmente a melhor cerveja do mundo quando bebida com alma no deserto urbano e desesperado de Staten Island, New York, EUA.

XLV

O prazer da dor. A dor do prazer.

Duas verdades que é para começarmos bem:

Sou Português. E, como tal, chego a esta altura do ano com vontades irresistíveis de balanços de actos e potências, inventários de alegrias e tristezas, planos de grandes e pequenas vinganças e/ou reconciliações. Tenho ainda lugar na minha alma e coração Português para a revolta, o protesto, o constatar de que a mudança muitas vezes é apenas uma volta que se dá para se manter o lugar quentinho ou a situação ou o espírito da coisa onde ela, ele, aquilo tem estado desde quase sempre. Ou, por outra, dá-se a volta para se chegar ao princípio dessa volta, tipo ratinho que se move apenas porque está vivo. Assim chego ao fim do ano, provavelmente com as passas que não vou engolir na mão direita, o espumante que me vai fazer caretas pousado sobre uma mesa cheia de coisas que não fazem assim muita falta. Assim, com dor e prazer, o denominador comum de todos os anos, de todos os momentos, de todas as acções, de todas as vidas, de todas as dores e prazeres.

Segunda, não nos esqueçamos da origem: li, um dia, numa banda desenhada (Hellraiser Comics vol ?) uma história de um pianista cego, sobredotado e louco (como convinha) com um rival que lhe rouba a mulher, a fama, mas que não consegue roubar a brutalidade crua e mítica do seu talento e da forma como ele o veicula através das teclas, dos ares, dos pedais, do corpo percussivo, negro e sinuoso do piano. Um dia este rival monta uma armadilha ao pianista génio/louco, espraiando lâminas por todas as teclas do piano. Umas encravadas nos sustenidos negro brilhantes, outras, despercebidas, mesmo para um intuitivo cego, por entre a brancura do marfim do sorriso daí a pouco ensanguentado do instrumento. Quando o cego passa a mão direita, como seu ritual, em profunda força e amor pelo piano, esta explode em mil pontos de luz vermelha. Ele sorri num esgar, iluminado sofredor que tem tempo agora para si próprio e o seu mais alto desígnio…Leiam se encontrarem! Mas antes, numa das muitas cenas de sexo com a sua serpente namorada (que aproveitando a escuridão do seu companheiro, tem sexo com o rival à sua “frente”) ele diz que estar com ela (em narração, voz distante, discurso indirecto) é como “morder um morango e encontrar uma abelha lá dentro”, furiosa que nos pica a língua ainda fresca, rubra e encantada, desmonto e acrescento eu. Essa imagem é recorrente naquilo que escrevo e penso, antes de qualquer escrever, e metaforiza bem o que é a vida, a que corre e a que vai correndo.

Chegado do Gato Fedorento, da Contra Informação, do humor que só tem piada por eu e nós não termos ambos, sento-me em frente desta janela para as janelas da minha alma e escrevo coisas dolorosas: imagens de sangue, de abelhas afiadas dentro de fruta, de pianos com lâminas. Mas também de anjos rebeldes, de corações dos quais se podem beber, de medusas errantes, de manhãs que teimam em não vir. É me vital este desequilibrado equilíbrio porque sei bem, ou aprendi, que uma pessoa não pode ou não consegue (é melhor continuar a dizer a verdade) ser sempre como devia, como um fio estreito, rigoroso, que corre, sem desvios, de uma montanha até ao mar último.

Assim o que faço é, sem justificações intencionadas, é procurar não me esquecer de nenhum dos mim mesmos (que são um com desvios) e servir ao prazer, dor; ao humor, tristeza; à dor, alegria; ao desespero, esperança. E assim me completar.

A todos um bom ano de 2007, nevermind xmas, já gastámos tudo quanto havia para gastar e já subornámos toda a nossa família e amigos. Que esse bom ano tenha prazer e dor, já não precisava de vos dizer, caros espectadores.

nota: omiti o primeiro artigo e o artigo sobre a morte de Quorthon pois estes mereceram posts individuais. Se que4isrem comentar por favor refiram o nº do artigo.































































































Um comentário:

sr. grauuu disse...

Até poderia concordar com o antropocentrismo radical se não existissem Gatos. Eu tenho a certeza que foram eles que conseguiram domesticar os homens. E sim, são eles são Deus.